“Você sabe com quem está falando?” Nasci e cresci com essa frase fazendo parte de minha vida. É estranho ter essa consciência. Às vezes, acho que parte de um mundo no qual fui criada está se abrindo aos meus olhos a partir de um novo prisma.
Lembro-me, como se fosse ontem, de meu pai contando com orgulho a carteirada que um amigo dele, advogado, deu em um policial na estrada, quando foi parado por velocidade alta. Simplesmente por ser advogado. Lembro-me também de como ele demonstrou querer ter o mesmo título para ter esse “poder”.
Meu pai era um homem doce, um excelente pai, muito carinhoso e super família. Tenho lembranças maravilhosas dele, mas isso não anula hoje minha leitura crítica da criação que recebi, como parte de uma classe média, branca, católica tradicional. Meu pai carregava, sim, um orgulho de ser aquele homem, pai e marido bem tradicional de sua época. Tão tradicional, que foi, por exemplo, ao colégio reclamar da leitura de “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, indicada para a 8a série (hj seria o 9o ano), para ele, inadequada aos meus 13 ou 14 anos na época. E se orgulhava de a esposa, minha mãe, ser uma exímia dona de casa e ele,o único provedor.
Estudei parte de minha Educação Básica em escolas particulares (pré-escola, Fundamental I até a antiga 2a série e Ensino Médio) e todo o Fundamental II no Colégio Municipal Georg Pfisterer, no Leblon, uma escola pública que atendia a uma classe média leblonense, que se destacava – ou era protetoramente separada pela diretora linha dura “Marilhão” – na divisão das turmas (sempre estive nas turmas 1 e 2, de um conjunto de umas 6 a 8 por série). Embora me enxergue somente hoje com mais visão crítica, sempre tive clareza da distinção “meritocrática” de aparência e de origem, que se fazia nessa escola, coisa que já me incomodava, mas acho que eu não sabia nomear.
Por que falo hoje sobre essas lembranças e experiências?
Porque aos 49 anos de idade, professora há 25, mantendo um padrão de vida alto, ainda tenho muito a aprender. Tenho percebido dia a dia meus privilégios, as construções sociais sob as quais fui formada, minhas vistas turvas sobre realidades muito distantes de mim. Apesar de já ter convivido com pessoas de origens distintas – seja pelas relações em grupos de jovens e de casais na igreja, seja pela vivência de meus filhos no esporte, ou ainda pela minha experiência profissional – minha origem é outra e, para ter essa percepção clara das injustiças em oposição aos privilégios, não é um processo fácil nem rápido. Estou aberta às aprendizagens, mas sei que o caminho é longo e ainda vou cometer muitos erros porque há coisas que tenho registradas em minhas entranhas. Há erros, entretanto, inadmissíveis, pois custam vidas reais ou simbólicas.
Ouvi de amigos meus que a mulher que gritou com o fiscal “Cidadão, não! Engenheiro civil formado, melhor que você.” teve a vida devastada e que “coitada, chegou a perder o emprego com aquela frase infeliz”. Sinceramente? Não tenho pena! Se, embora critique o passado, entendo a cabeça que meu pai tinha devido a uma outra época, hoje, com acesso a tanta informação, com a percepção da necessidade de uma sociedade plural, não cabe mais essa visão tosca e torta de mundo. Reações desse tipo, como a desta cidadã e de seu companheiro, são inadmissíveis. É necessário, sim, fazer valer a justiça sem que haja dois pesos e duas medidas sempre pendendo positivamente para os privilegiados. Se está explícito o que ela perdeu (por exemplo o emprego) por suas atitudes, pensemos quantos já sofreram e também tiveram suas vidas arrasadas, devastadas, injustamente, por causa de “cidadãos de bem”, que se consideram melhores e superiores aos cidadãos comuns.
Manter esse tipo de conduta sem punição severa é endossar a força e o poder de pessoas que se sentem superiores por seus privilégios invisíveis para eles, mas não mais invisíveis para quem tem um mínimo de empatia com a existência alheia.
Não se pode tolerar o intolerável.
É por isso que sou totalmente contra ideias do tipo “direitos humanos para humanos direitos”. Quem julga quem? Quem são esses “humanos direitos”? Até bem pouco tempo eram esses que agora estão aparecendo por meio de vídeos amadores de celulares. Graças a esses vídeos seres que se portam como donos do mundo têm sido desnudados, desmascarados, escrachados diante da sociedade.
É isso. Sigo tatiando a vida e lendo o mundo em busca de luzes ao fim do túnel e muitas aprendizagens, porque estou só no comecinho.