Terceiro livro de Jessé Souza que leio durante essa pandemia. Realmente considero as leituras bastante importantes para o momento que vivemos. A desigualdade avassaladora em nosso país tem causas concretas e sua manutenção é criminosa. Tenho pensado muito nessas questões sem enxergar uma luz no fim do túnel, mas o sociólogo nos apresenta indicadores e análises sobre os quais precisamos refletir. Jessé, porém, comete, a meu ver, um erro básico. Ele expõe, de forma clara e contundente, sua visão político-partidária e seu favoritismo ao PT.
Por que digo que isso é um erro básico?
Simplesmente porque a pesquisa e análise sociológica que ele faz da sociedade brasileira – o raio x do que ele chama de ralé (no livro de que mais gostei) e a categorização das classes médias, dentro do que generalizamos como Classe Média, neste livro de agora – tem um ineditismo e um valor gigantesco, mas que se perde ou corre o sério risco de se perder por pura antipatia de leitores que vão rechaçá-lo por incompatibilidade, total ou parcial, com a visão política.
O grande feito do autor é a longa e detalhada pesquisa realizada das classes e a análise que constrói. A leitura atenta me fez não só enxergar concretamente algumas suposições que eu já tinha, como também me permitiu conhecer detalhes inimagináveis, até então, e reconhecer invisibilidades favoráveis a uns e cruéis à maior parte da sociedade.
Ainda em meus ouvidos os gritos que viralizaram da mulher de classe média dizendo ao fiscal da prefeitura, aqui do Rio de Janeiro, “Cidadão, não! Engenheiro Civil formado, melhor do que você.”, como se superior fosse, (escrevi sobre isso aqui), li A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade procurando, também, fazer uma profunda autocrítica já que nasci e me criei nesta classe e, dentro dela mesma, tive uma pequena ascensão em comparação com meus pais e irmãos. Destaco trechos de algumas páginas seguidas e centrais do livro, para ilustrar a análise de Jessé Souza sobre a desigualdade. Os grifos em negritos são meus.
(…) A meritocracia é um ponto nodal do mecanismo de identificação com as elites nacionais e estrangeiras, pois tende a santificar e legitimar o arranjo excludente dominante como sendo decorrente de uma competição social “justa”.
(…) um tipo muito semelhante de segregação ocorre por meio de mecanismos invisíveis, como costumam ser os de classe. Ainda que a raça permaneça como indicador importante daqueles que podem ser desprezados e humilhados impunemente, são mecanismos de classe que viabilizam a nova escravidão e o novo apartheid. Isso se torna evidente quando temos a coragem de criticar a noção frágil, absurda e ridícula que reduz as classes sociais aos seus respectivos níveis de renda, impedindo a percepção do principal: entender o processo social que torna possível que uns ganhem tanto e outros tão pouco. (p. 140)
(…) O privilégio começa no berço como a marca mais irrefutável de injustiça, uma vez que ninguém deve ser discriminado por nascer na “família errada”. Como não existe a família em geral, mas sempre “famílias de classe”, ou seja, processos de socialização familiar singulares, que se reproduzem diferencialmente conforme a classe social, os privilégios resultantes das socializações familiares específicas são os mais importantes.
O acesso privilegiado ao conhecimento valorizado pressupõe uma renda comparativamente maior da família, de modo a comprar o tempo livre dos filhos para que eles se dediquem apenas aos estudos. Reservado às elites e à classe média, este já é um privilégio que invalida qualquer pretensão tola de merecimento e esforço próprio, dado que, no Brasil, os filhos das classes populares são obrigados desde a adolescência a estudar e trabalhar para ajudar em casa – obviamente, na imensa maioria dos casos, acabam não fazendo bem nem uma coisa nem outra.
A compra do tempo livre dos filhos está longe de ser o único privilégio positivo da classe média a ser contraposto aos privilégios negativos das classes populares. Tão ou até mais importantes são as heranças invisíveis e não monetárias. A capacidade de concentração, a percepção da leitura como atividade a ser estimulada, a autodisciplina e o autocontrole, a possibilidade de incorporação dos pensamentos abstrato e prospectivo – tudo isso é repassado aos filhos da classe média de forma imperceptível, como produto de mera socialização familiar.
O filho das classes populares é condenado a reproduzir a falta de aptidão dos pais, reproduzida secularmente por práticas ativas de exclusão, exploração, humilhação e abandono. Por conta disso, muitos dos filhos dessas classes, aos 5 anos de idade, já entram na escola como perdedores, condenados ao analfabetismo funcional e, depois, ao trabalho semiqualificado e desqualificado. (p. 142)
(…) nos países mais igualitários do capitalismo social-democrata, o privilégio estético do bom gosto – sempre moral, pois distingue quem é superior ou inferior – é uma forma de reconstruir uma desigualdade mais sutil sob o plano do pressuposto de direitos institucionalizados. Ainda que a diferença entre os salários seja menor nos países social-democratas europeus do que entre nós, por exemplo, também lá existem disparidades, que precisam ser justificadas.
A sutileza do privilégio estético, separando as pessoas mais e menos sensíveis, serve para justificar um tipo de privilégio limitado, ou seja, funciona desde que a diferença social não seja abissal. Tal tipo de justificativa é eficaz porque nessas sociedades a enorme maioria das pessoas tem acesso a educação e a saúde de qualidade, além de um salário decente, ainda que menor do que de outras pessoas. Além disso, a polícia não chega “esculachando” na casa de nenhum trabalhador, por mais pobre que seja.
Ou seja, para a enorme maioria, todos são gente, com expectativas humanas atendidas e a possibilidade de imaginar uma vida com conforto e com esperança. (…)
Como todos podem contribuir com seu trabalho para o bem comum – posto que tiveram boa educação e estímulo em casa para o estudo –, ninguém é desrespeitado nem tratado como animal e sub-gente, como corre no Brasil. (…) Essa é a diferença fundamental do Brasil em relação a essas sociedades que admiramos, e é isso que tem de ser explicado (…) (p. 143-144)
Ainda que o capitalismo funcione aqui de modo similar ao de outros países, todas as nossas mazelas sociais derivam do fato de que jamais alcançamos um patamar de dignidade abrangente. Pelo contrário, perpetuamos o processo desumanizador da escravidão por outros meios. Portanto, tratar a todos como gente depende de processos de aprendizado coletivo, aqui nunca realizados, e nada tem a ver com o vírus do culturalismo vira-lata obcecado com o jeitinho e a corrupção do país.
No Brasil, enfim, nunca tivemos uma luta de classes de verdade, na qual os interesses das classes populares tenham se feito valer como direito. O que sempre tivemos aqui foi uma cruel e covarde opressão de classe, na qual qualquer tentativa de diminuir, por pouco que fosse, a abissal distância social redundou em golpes de Estado e em estados de exceção. (p. 145)
Optei por destacar aqui a distinção de classes, mas não apresentei a excelente – e inédita – categorização “moral” da classe média. Talvez escreva sobre isso outro dia. Mas deixo o gostinho pela leitura do livro. Vale a pena!
SOUZA, Jessé. A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018.