Quando vejo mulheres jovens, em pleno século XXI, indo contra as lutas feministas por discordarem, por exemplo, do direito ao aborto, percebo o quanto somos limitados em conhecimento e pouco informados sobre o grande emaranhado das inúmeras lutas.
A luta pelo direito ao abordo é um tema polêmico e atinge em cheio grupos políticos conservadores que se baseiam em princípios religiosos. Como é um tema que atinge diretamente pessoas de classe média e alta (em um conservadorismo tacanho porque estas mulheres têm dinheiro para pagar por esse procedimento com segurança e anonimato), vira uma batalha em plataformas e eleições políticas. No entanto, enquanto pessoas pseudo esclarecidas acreditam que estejam lutando em prol da vida, indo de encontro às feministas, penso que menosprezar e enfraquecer o papel das mulheres significa ignorar inúmeras outras lutas em prol da vida que, por atingirem as populações de menos prestígio (a “ralé” segundo Jessé Souza), não interessam à mídia e não chegam à plataforma dos candidatos mais destacados.
Em outras palavras, enquanto pessoas enfraquecem as lutas feministas por discordarem de alguns temas, inúmeras mulheres continuam tendo seus direitos à maternidade, à escolha pela vida, à escolha pela independência cerceados. A esterilização de mulheres pobres e pretas, o tratamento médico indigno, a falta de acesso a direitos mínimos de dignidade humana são alguns dos crimes cometidos pela omissão e pela ignorância de tantos hipócritas que dizem lutar pela vida. As coisas não são simples, muito menos planas, como alguns querem acreditar que são.
Esse desabafo meu – uma pessoa que nunca faria um aborto e que por princípio privado é contra o aborto – sai com a dor que tem me corroído em meio a tantos absurdos com os quais estamos vivendo e que, assustadoramente, inúmeras pessoas não enxergam. Tomo coragem de desabafar também, depois de tantos meses calada e sufocada, após ler pela primeira vez um livro da italiana Silvia Federici, professora e militante feminista, que defende que “o feminismo não é somente melhorar a situação das mulheres, é criar um mundo sem desigualdade, sem a exploração do trabalho humano que, no caso das mulheres, se transforma numa dupla exploração.” (Em entrevista ao El País, em 25 set 2019)
O uso e o abuso da mulher é estrutural. Federici demonstra isso em situações tão corriqueiras em nossas rotinas de trabalho como esta também retirada da entrevista ao El País:
“Há toda uma história de mulheres que precisam vender seu corpo, não somente na prostituição, em todas as profissões. Não ver este aspecto cultural é uma mistificação. Há uma grande divulgação, mas não vai à raiz do problema. Um exemplo simples, as garçonetes nos Estados Unidos vivem das gorjetas e ganham muito pouco. Elas sabem que sua postura sexual com os clientes interfere. Há algumas que me contaram que no fim de mês, quando precisam pagar o aluguel, se expõem mais, porque a gorjeta sobe. Esta contínua venda sexual do corpo é parte de uma situação econômica histórica. Se não denunciarmos estes casos estamos distorcendo.”
Vivemos em um mundo cujas escolhas do que falar e do que calar custam vidas em todos os sentidos. Não há mais como votar em um candidato e lavar as mãos pelos anos que seguem daquele mandato, achando que não tem responsabilidade pelos atos dele; não dá mais para ignorar a miséria humana enquanto, alienadamente, enche os olhos de coisas belas. A minha vida privada pode ser bela, mas a da grande maioria nem pode ser chamada de vida. Por isso não posso me calar. A dor que me bate no peito é dilacerante.