Intolerância religiosa – “Marchar não é caminhar”, livro de Ivanir dos Santos

Antes de falar sobre o livro, vou contar um pouquinho sobre como cheguei a ele.

Eu nasci e me criei em uma família de fé Católica tradicional, aquela que batiza os filhos, coloca na catequese, vai às missas aos domingos… Quando adolescente, por influência de meu irmão seis anos mais velho, acabei conhecendo e atuando por muitos anos na Renovação Carismática.

De família baiana, porém, tenho lembranças de ir a Salvador e sentir o sincretismo religioso no ar. Das Lavagens das Escadarias do Bonfim ao Caruru, percebia coisas que não entendia, mas que sentia por outras influências que só deveria vê-las como misticismo, folclore, coisas menores.

Pois é. Comecei a me dar conta da real existência de preconceito e intolerância religiosa no Brasil há bem pouco tempo. É claro para mim agora, embora considere bastante tardio, que quem sempre esteve em situação de privilégio não consegue enxergar os reais problemas alheios. Por uma grande coincidência, acho que isso se concretizou em minha vida quando o tema foi cobrado na produção textual do ENEM 2016: Caminhos para se combater a intolerância religiosa.

Tendo adotado o clássico britânico Orgulho e preconceito, como leitura no 2o ano do Ensino Médio, desenvolvi aulas temáticas sobre diversos tipos de preconceito. Nessa época, ainda não havia a patrulha ideológica que estamos sofrendo hoje, que não nos permite ampliar discussões que surjam porque rapidamente aparece alguém para rotular “professora isso“, “professora aquilo“.

A discussão do livro possibilitou boas trocas e leituras sobre preconceito social, de classe, preconceito contra as mulheres e, na sequência, vários outros como o racial, a gordofobia, a homofobia, até que chegamos ao preconceito às religiões de matriz africana por causa de uma notícia de jornal sobre o ataque a uma menina de 11 ou 13 anos que estava com roupas características de sua crença. Lembro-me que fui fazendo uma construção muito pela experiência da sensibilidade dos alunos como sentimentos sobre passar na frente de igrejas, templos ou, vejam só, “lojas de artigos de umbanda”. Foi algo que construí com eles numa relação baseada nas nossas próprias experiências porque testemunhei, por exemplo, já ter ido a cerimônias católicas, protestantes, evangélicas pentecostais, judaicas, mas nunca ter entrado em um terreiro ou em um templo (?) espírita.

Foi na pesquisa para criação e embasamento dessas aulas que conheci, por vídeos no YouTube, Ivanir dos Santos, babalaô umbandista (caso esteja escrevendo algo errado, peço que me corrijam). Gostei muito de suas palavras sobre respeito, identidade, dignidade e tolerância, e passei trechos para os alunos, junto com outros vídeos. Coincidências à parte, os alunos, na época, participaram ativamente das discussões e ficaram super felizes de ter sido o tema da redação do ENEM. Eu e eles aprendemos juntos e isso foi renovador.

Ficando mais atenta a essas questões, mas sem mais ter a oportunidade de discutir o tema (está cada vez mais difícil…), assisti a um debate com Ivanir dos Santos e outros representantes religiosos na Primavera dos Livros, no início deste mês (outubro/2019), nos jardins do Museu da República. Lá comprei o livro Marchar não é caminhar, fruto de sua tese de doutorado.

A leitura me fez perceber o que tenho procurado ultimamente: os outros lados das histórias que sempre me contaram. Afinal, somos cercados e formados por inúmeras histórias únicas (como explicou Chimamanda Ngozi Adichie) e, com isso, perdemos, muitas vezes, a capacidade de enxergar que elas podem ser bem diferentes se as lermos por outras perspectivas.

De forma bem resumida, o livro trata da intolerância religiosa com uma visão da história desde o início do século XX até os dias de hoje, fazendo correlações diretas com o racismo e a política de extermínio. Ivanir dos Santos mostra os problemas decorrentes das religiões consideradas marginais em oposição àquelas que se impõem como oficiais. E demonstra com dados, relatos e notícias o crescimento das religiões evangélicas pentecostais e neopentecostais que se apoderam das diversas mídias (rádios, redes de televisão, jornais próprios etc.) e utilizam esses meios para marginalizar ainda mais as religiões afrodescendentes.

“Essas ações, em relação às religiões de matriz africana, são resultados, em grande parte, da criação de uma representação simplista, menosprezada e desqualificadora, que foi construída ao longo do tempo no Ocidente e, principalmente, no Brasil, sobre as etnias africanas, assim como sobre suas experiências religiosas. Elas foram compreendidas como ‘primitivas’ e ‘arcaicas’, destinadas, assim, ao desaparecimento, porque representavam o passado da humanidade.

Tanto a intelectualidade brasileira, quanto a Igreja Católica e o Estado colaboraram, cada um a seu modo, para construir e moldar o imaginário social desqualificador do negro e das suas religiões e ressignificações religiosas no Brasil.” (SANTOS, 2019, p. 67)

O autor ainda ressalta que

“Os ataques às religiões afro-brasileiras, que antes ocorriam exclusivamente nos templos, restringidos ao meio evangélico, ampliaram-se para o conjunto da sociedade, devido à difusão midiática e ao empreendedorismo econômico.” (SANTOS, 2019, p. 86)

Acho que essa é uma leitura extremamente válida para todos que vivem alguma fé no Brasil, para todos que gostam de ver por outras perspectivas as histórias que conhecemos e que nos são também transmitidas pelos noticiários. Esse livro nos traz o momento presente, as intolerâncias, o racismo e as políticas atuais de extermínio que, muitos de nós têm apoiado, acredito eu, por desconhecimento.

Citando outro autor, Ivanir dos Santos nos mostra que intolerância religiosa no Brasil é antônimo de tolerância, mas é sinônimo de discriminação racial. Precisamos entender esses absurdos com o qual convivemos e de que, muitas vezes, somos repetidores.

SANTOS, Ivanir dos. Marchar não é caminhar: interfaces políticas e sociais das religiões de matriz africana no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2019.

Acréscimo que faço a esta publicação em 16/10/2019.

Acabei de encontrar em meu FB esta publicação feita por mim em 16/10/2016:

“Voltemos à Idade Média! Acendamos as fogueiras. Queimemos os bruxos e bruxas de nossa era!
Atualização feita às 20h30:
A quem me questionou de eu estar sendo incoerente ao divulgar informação desrespeitosa contra candidato, já que peço sempre a meus amigos que mantenham um mínimo de educação, explico calmamente: estou compartilhando notícia baseada em dados concretos. Existe um livro escrito e publicado pelo próprio candidato, com um teor homofóbico e que divulga preconceito religioso de base racial e cultural com o objetivo inescrupuloso de fazer a sua própria igreja crescer e enriquecer. Simples assim!”

(Coloquei este print da matéria que saiu no jornal O Globo)

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