Mexendo em meus alfarrábios, encontrei esta crônica de Cecília Meireles. A impressão que tive ao relê-la hoje é que a autora está vivinha e a escreveu para nós por esses dias. Ela consegue nos fazer refletir sobre questões éticas, que cultivamos tanto na teoria e são jorradas em nossas palavras nas redes sociais, mas que na prática são bem diferentes. E nos leva, também, a questionar (pena que é um questionamento apático…) as atitudes de autoridades constituídas.
MUNDO ENGRAÇADO
O mundo está cheio de coisas engraçadas; quem se quiser distrair não precisa ir à Pasárgada[1] do Bandeira, nem à minha Ilha do Nanja; não precisa sair da sua cidade, talvez nem da sua rua, nem da sua pessoa! (Somos engraçadíssimos também, com tantas dúvidas, audácias, temores, ignorância, convicções…) Abre-se um jornal – e tudo é engraçado, mesmo o que parece triste. Cada fato, cada raciocínio, cada opinião nos faria sorrir por muitas horas, se ainda tivéssemos horas disponíveis.
Há os mentirosos, por exemplo. E pode haver coisa mais engraçada que mentirosos? Ele diz isto e aquilo, com a maior seriedade; fala-nos de seus planos; de seus amigos (poderosos, influentes, ricos); queixa-se de algumas perseguições (que aliás, profundamente despreza); às vezes conta-nos que foi roubado em algum quadro célebre ou numa pedra preciosa, oferecida à sua bisavó pelo Primeiro-Ministro da Conchinchina. O mentiroso conhece as maiores personalidades do mundo – trata-as até por tu! Seus amores são a coisa mais poética do século. Suas futuras viagens prometem ser as mais sensacionais, depois dessas banalidades de Ulisses e Simbad… Certamente escreverá seu diário, mas não o publicará jamais, por que é preciso um papel que não existe, um editor que ainda não nasceu e um leitor que terá que sofrer várias encarnações para ser digno de o entender. Em geral, os mentirosos são muito agradáveis, desde que não se tome como verdade nada do que dizem, e esse é o inconveniente: às vezes, leva-se algum tempo para se fazer a identificação. Uma vez feita, porém, que maravilha! É só deixá-los falar. É como um sonho, uma história de aventura, um filme colorido.
Há também os posudos. Os posudos ainda são mais engraçados que os mentirosos e geralmente acumulam as funções. O que os torna mais engraçados é serem tão solenes. Os posudos funcionários são deslumbrantes! Como se sentam à sua mesa! Como consertam os óculos! Que coisas dizem! As coisas que dizem são poemas épicos com a fita posta ao contrário. Não se entende nada – mas que diapasão[2]! Que delicadas barafundas[3]! que sons! que ritmos! Seus discursos e as palmas que o acompanham conseguem realizar o prodígio de serem a coisa mais cômica da terra, pronunciada no tom mais sério, mais grave, mais trágico – de modo que o ouvinte, que rebenta de rir por dentro, sofre uma atrapalhação emocional e consegue manter-se estático, paralisado, equivocado.
Os posudos, porém, são menos agradáveis que os simples mentirosos. Os mentirosos têm um jeito frívolo, como se andassem acompanhados de um criado que anunciasse: “Não creiam em nada do que o meu amo diz!” Mas os posudos levam um séquito de criados, todos posudos também, que recolhem nas sacolas, grandes e pequenas gorjetas, porque uma das qualidades do posudo é andar sempre com muto dinheiro – que não é seu!
[1] Pasárgada foi empregado por Manuel Bandeira como lugar mítico da felicidade, assim como a Ilha do Nanja de Cecília Meireles.
[2] Diapasão: extensão de qualquer voz ou instrumento; timbre de voz ou instrumento.
[3] Barafunda: mistura desordenada de coisas diversas.