Sempre tive a mania de guardar bons textos que leio. Antigamente, recortava jornais, revistas e os colecionava; depois passei a guardar no computador mesmo. Infelizmente já perdi muitos. Volta e meia, porém, mexo em meus alfarrábios sobreviventes e encontro coisas bem interessantes.
O saudoso filósofo Leandro Konder, por exemplo, escreveu no Jornal do Brasil, em 2003, um texto a que deu o título de “Informação e conhecimento”. Reli-o hoje e parece que ele está vivo agora em 2017, escrevendo para nós, brasileiros, com a lucidez que sempre teve.
Eis o texto:
O conhecimento depende da possibilidade da comparação. Quem só leu um livro não pode saber se ele é bom ou ruim. Quem só viu um filme não está em condições de avaliá-lo. Quem só tem informações sobre uma determinada linha de pensamento está incapacitado para opinar sobre as ideias de representantes de outras linhas.
Daí a importância da livre discussão, do acesso às mais diversas informações e interpretações. Daí a importância da liberdade de imprensa, proclamada na Revolução Francesa. Em Paris, no auge da agitação revolucionária, chegaram a ser lançados cerca de mil jornais. Depois, veio Napoleão, impôs a ordem imperial e os jornais ficaram reduzidos a quatro.
Estava desencadeado, entretanto, um processo de expansão dos meios de comunicação de massa que passou pela invenção do rádio, do cinema, da TV, do transistor, dos computadores e dos satélites. Uma mudança significativa: as informações que antes eram sonegadas agora vêm numa enxurrada.
Uma questão, entretanto, não está resolvida: como utilizar o que vem nessa enxurrada em proveito da liberdade, da justiça e da consciência crítica dos seres humanos?
Uma primeira dificuldade se apresenta nos hábitos que se adquirem nas sociedades que giram em torno do mercado: as pessoas, hipercompetitivas, se tornam imediatistas, utilitaristas, trocam bens culturais com a mesma desenvoltura com que trocam mercadorias banais. Tendem a reduzir tudo ao valor quantificado, ao dinheiro. Informações, como instrumentos que podem propiciar lucros, são preferíveis a expressões artísticas de experiências vividas mais complexas – e dão menos trabalho para serem assimiladas.
Os livros vão passando a interessar exclusivamente na medida em que têm informações ”úteis”. A rigor, não precisam nem ser lidos; alguém pode resumi-los para nós. Vale a pena lembrar o caso daquele intelectual a quem um colega perguntou se tinha lido determinado livro e ele respondeu: ”Pessoalmente, não”.
Ainda existem – é claro – os devoradores de livros, aqueles que insistem em lê-los ”pessoalmente” e em grande quantidade. Antonio Candido, Marilena Chauí, Sérgio Paulo Rouanet, Cleonice Berardinelli, Eugênio Bucci e Arthur Dapieve são alguns desses bibliófagos. À frente deles, porém, se ergue uma montanha descomunal.
No ano em que, segundo Balzac, o poeta Dante Alighieri esteve em Paris, ele poderia ter lido todos os 1.338 volumes da biblioteca da universidade (que era, então, a maior da França). Atualmente, nem mesmo os meus bibliófagos, se passassem a vida inteira lendo os livros do acervo da Biblioteca do Congresso, em Washington, conseguiriam ler a centésima parte dos volumes.
Os computadores, sem dúvida, nos dão uma grande ajuda no armazenamento dos dados. Mas as limitações do nosso conhecimento continuam a nos frustrar. Platão, na Grécia antiga, indagava: ”Como é possível que, com tão poucas informações, nós tenhamos chegado a saber tanto?”. No século 20, George Orwell inverteu a indagação: ”Como é possível que, com tantas informações, nós tenhamos chegado a saber tão pouco?”
Sabemos pouco, de fato, quando pensamos na fragilidade e nas limitações das nossas sínteses. E na escassa repercussão que nossos esforços têm junto à massa da população.
A luta travada em favor do fortalecimento da ”sociedade civil” (Gramsci) e em favor do aumento da participação popular na vida política e cultural entra em conflito com a hábil resistência dos privilegiados, que dispõem do poder de selecionar as notícias que são difundidas para milhões e deixam de lado as informações que, supostamente, ”só interessam a uma minoria.”
A práxis do público consumidor – a mobilização capaz de manifestar com vigor a sua consciência crítica – sofre os efeitos diluidores dos hábitos e inclinações ”consumistas”, eficientemente estimulados pela indústria cultural.
Nem tudo, porém, está perdido. Com o tempo, as massas vão ganhando experiência e vão se tornando mais exigentes em suas decisões e em suas escolhas. Vão comparando as coisas e formando um público novo para o controle democrático do poder sobre a produção e a difusão de informações.
É preciso ter paciência. A capacidade de comparar, afinal, só se desenvolve através do persistente exercício prático da comparação.
Konder, Leandro. Jornal do Brasil, Caderno B, 17 de maio de 2003.