Meu 73° livro do ano, Como o racismo criou o Brasil, do sociólogo Jessé Souza, apresenta – exponho aqui bem resumidamente – uma análise da sociedade brasileira, de forma “jessecianamente” polêmica, pelo viés do desenvolvimento de uma disputa por reconhecimento social e manutenção do status quo de uma elite endinheirada (os ricos), seguida de uma elite cultural (a classe média), que vai receber o apoio de uma classe baixa a qual, pelas vias da moralidade, quer se distinguir dos marginalizados delinquentes. Daí se mantém e se estrutura um racismo multidimensional.
O racismo surge sempre como manipulação das nossas necessidades de reconhecimento social, seja para atender às necessidades de legitimação das classes privilegiadas, para justificar o “direito” ao privilégio injusto, seja para criar alguma forma de distinção social positiva para os estratos oprimidos dos “brancos pobres” e dos “pobres remediados”, de modo a forjar uma classe/raça inferior a todos para a qual canalizar o ressentimento que não pode ser dirigido aos poderosos.
Já li vários livros do autor e tenho com ele uma relação de amor e ódio. Amor porque seus livros trazem uma análise ampla e perspicaz da sociedade brasileira que ainda não encontrei em outro autor. Entretanto, sinto, também, um ódio voraz porque, embora seus textos sejam totalmente acessíveis a leitores comuns fora da academia – e essa me parece há muito sua proposta – penso que, às vezes, ele se rebaixa às entranhas no modo de explanar suas críticas com adjetivos nada bem-vindos numa escrita que pressupõe uma análise mais acurada da sociedade. Isso me incomoda sobremaneira. Além disso, seu jeito arrogante de criticar outros pensadores e pesquisadores que têm um papel importante em nossa sociedade também não me agrada.
Fora esses dois pontos, porém, acredito que, mesmo com um jeito agressivo que o coloca na berlinda para um revanchismo acadêmico – o que me parece prejudicial à divulgação entre os seus pares – suas análises contundentes trazem uma leitura bastante concreta e pertinente de nossa construção social.
Super vale essa leitura!
Em ordem de preferência dos livros que já li de Jessé Souza, Como o racismo criou o Brasil e A ralé brasileira, pesquisa espetacular sobre a população mais marginalizada de nossa sociedade, são, para mim, os melhores livros de sua produção.
Deixo aqui um trecho maior do livro para quem quiser um gostinho dessa necessária leitura:
Assim, o critério decisivo para aferir o grau de desenvolvimento de uma sociedade é saber se ela manipula a necessidade de reconhecimento social dos indivíduos para jogar pessoas e classes sociais umas contra as outras ou se ela reconhece a importância da universalidade desse reconhecimento como seu desafio social mais significativo.
Uma sociedade como a brasileira manipula a necessidade de reconhecimento social, degradando-a em ânsia por distinção positiva às custas dos mais frágeis e vulneráveis, transformando as vítimas em culpados do próprio infortúnio e perseguição histórica. A classe média branca se sente privilegiada pela mera distância social em relação a negros e pobres, os quais explora a preço vil e humilha cotidianamente, e está disposta a tudo para garantir esse privilégio sádico, inclusive ir às ruas protestar contra qualquer governo que ouse diminuir essa distância. A real função do falso moralismo do combate à corrupção há cem anos, como vimos, é evitar a inclusão e a ascensão social desses humilhados e explorados cuja imensa maioria é composta de negros.
Os pobres remediados, por sua vez, quer sejam brancos pobres, quer sejam mestiços ou negros dispostos a tudo para não serem associados à ralé de humilhados e abandonados, quase toda negra, se apegam de modo renitente e agressivo a qualquer distinção positiva que lhes acalme o medo da desclassificação social. Essa é a real função do racismo brasileiro: construir uma classe/raça de indesejáveis contra a qual todas as outras classes podem se distinguir positivamente. Como a distinção social é a necessidade mais básica de indivíduos e grupos sociais, pelo ganho em reconhecimento social que produz, a construção da classe/raça que todos podem humilhar, que morre assassinada todos os dias sem provocar comoção em quase ninguém, é o fator que esclarece a lógica de funcionamento e a verdadeira lei fundamental da sociedade brasileira. Ela é a nossa verdadeira Constituição, não aquela dos juízes como Moro, mera fachada, mas a que explica toda a vida social, econômica e política do Brasil como ela verdadeiramente acontece. Ela foi construída historicamente e pode ser refeita. E não tem nada a ver com maldições culturalistas de mil anos, como a imensa maioria de nossa inteligência vira-lata pregou até hoje.
Uma sociedade mais humana e mais avançada moral e socialmente tem que aprender a se orgulhar não de sua distância em relação às vítimas sociais que são construídas ad hoc, volitivamente, para propiciar esse tipo de gozo sádico do escravocrata, um reconhecimento social construído contra os outros à custa do sofrimento deles. É possível, e sociedades mais igualitárias o demonstram, se orgulhar precisamente do contrário: se orgulhar e se sentir reconhecido socialmente por participar de uma sociedade que não exclui ninguém ou apenas muito poucos. Nada é mais importante, avançado, justo e desejável que isso.
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