Pai, livrai-nos do nosso racismo de cada dia

Não conhecia o Pastor Kleber Lucas até o último sábado, quando, em conversa com um amigo, ele – sabendo de minhas posições – me perguntou o que eu pensava sobre a indicação de racismo no tradicionalíssimo hino evangélico “Alvo mais que a neve”. Fui ouvir a música e reler a passagem bíblica base da intertextualidade e encontrei um probleminha. Há uma distorção do que está na Bíblia e, mesmo que se argumente que são apenas metáforas, acho que não podemos esquecer que metáforas podem ser muito cruéis. Palavras matam! Se não fisicamente, podem matar a psiqué de um ser humano.

Resolvi escrever, então, sobre o assunto, porque tenho procurado ler muito para conhecer as questões raciais e aprender a ser antirracista, pois – é importante assumir – não é algo natural nem fácil. Precisamos nos reeducar porque nascemos e vivemos em uma cultura extremamente preconceituosa e discriminatória contra os negros e reproduzimos isso, desde as pequenas coisas, sem nem perceber. Por isso, peço que vejam meu argumento, antes de achar que é só mais um mi-mi-mi.

É necessário parar pra refletir sobre o que determinadas expressões que costumamos dizer – muitas vezes sem má intenção – causam nas pessoas negras. O que será que, por exemplo, as metáforas com o adjetivo “negro”, que usamos com tanta naturalidade, promovem na formação da identidade dos negros, principalmente, das crianças em plena formação? É esse questionamento que tem me movido e me levado à leitura de pesquisas e estudos sobre questões raciais nos últimos tempos, além da leitura constante de literatura, óbvio, pois os gêneros ficcionais nos levam a viver outras vidas, nos permitem enxergar por outras perspectivas e nos fazem sentir, na pele, a dor alheia.

A triste verdade é que nós, brancos, temos muita dificuldade de enxergar – e encarar – a profundidade do racismo real, a seco, em nossa sociedade. É difícil assumir que somos racistas. O outro pode ser, mas eu, não. Por isso, muitas vezes, as discussões sobre questões linguísticas, por exemplo, que ocorrem nas redes sociais, não ultrapassam a superficialidade: se tal coisa é ou não racista, se tem realmente origem racista. Nesse sentido, a palavra “racista” pode acabar sendo desvirtuada do que realmente contém em si de desumanização do outro, e passa a ser algo (o vocábulo em si) desvalorizado, o que nas redes sociais recebeu o codinome onomatopeico de “mi-mi-mi”. Só que precisamos, como seres humanos, ir além dessa discussão superficial. Pode ser difícil aceitar, mas, mesmo que esta ou aquela palavra ou expressão não tenha uma origem etimológica racista, num contexto como o nosso, onde o negro sempre foi e ainda é, infelizmente, depreciado em tantas situações, alimentar essa depreciação pela linguagem é desumano e imoral. A palavra, por meio de nossa língua materna, que deveria ser veículo de união do povo, passa a ser instrumento de subjugação do outro.

Dito isso, vou apresentar o que penso especificamente sobre a letra da música evangélica, mencionada pelo Pastor Kleber Lucas, durante programa de entrevista ao Caetano, disponível no YouTube, a partir do refrão que destaco a seguir:

“Alvo mais que a neve
Alvo mais que a neve
Sim nesse sangue lavado
mais alvo que a neve serei”

Então, falando agora especificamente sobre a música, o refrão, a meu ver, contém uma visão cultural de brancos, numa religiosidade de base branca, portanto, mesmo que sem intenção alguma, ela contém, sim, uma visão racista. E, além de racista, usou a passagem bíblica de modo errado, porque diz uma coisa diferente do que está no profeta Isaías e é exatamente esse erro que contém a visão racista.

Vejamos o que diz Isaías 1,18, base da intertextualidade:

“‘Pois bem, justifiquemo-nos’ – diz o Senhor –. ‘Se vossos pecados forem escarlates, se tornarão brancos como a neve! Se forem vermelhos como a púrpura, ficarão brancos como a lã!'”

Fazendo rapidamente uma análise sintática dos termos das duas orações que contêm uma condição imposta, dá pra ver que o sujeito em Isaías é diferente do sujeito apresentado no refrão da música. Na passagem bíblica, “pecado” é o sujeito da oração. Então, se o ser humano se arrepender, o pecado deixará de ser escarlate, vermelho cor de sangue, e se tornará branco como a neve; na música, porém, o sujeito é o pronome “eu”. Sou eu, indivíduo, pessoa, ser humano. Sou eu que vou deixar de ser suja, pecadora, para me tornar pura, limpa, branca como a neve. Aí está a marca racial dessa metáfora, que,  numa sociedade que se construiu sob 400 anos de escravidão, passou muito tempo “despercebida”. As pessoas tradicionalmente com voz, em nossa ainda pequena, mas muito cruel História, não sentiam e não sentem isso na  pele, por isso, nunca questionaram e muitos ainda ratificam a manutenção dessas ideias, porque, como não sentem nem enxergam essa dor, a menosprezam. Essa é a base que promove a manutenção de metáforas com conotação racista e a ridicularização dos que defendem uma conscientização para mudança. 

Voltando à passagem de Isaías e aproveitando uma nota presente na Bíblia da Editora Ave Maria sobre o versículo 18, na qual se diz que “antes de uma promessa de perdão, é preciso ver nesse versículo um desafio a defender a inocência”, creio que defender a inocência, defender a ingenuidade das pessoas, defender a vida em plenitude, sem as amarras que oprimem, é o que se constrói como proposta com a vinda de Cristo.

E é justamente aí que entra a minha argumentação e meu princípio: com todo conhecimento que já adquirimos na humanidade, a palavra não deve ser mais utilizada como instrumento de subjugação do outro. Então, é pela defesa da inocência de pessoas negras – principalmente pela pureza, desde sempre tão roubada, das crianças negras que são diariamente atropeladas e massacradas pelo nosso preconceito e discriminação, pelo racismo estrutural e desumano, mantido por nós, brancos, que não enxergamos o quanto as maltratamos – que tenho estudado tanto para conseguir mudar o “modus operandi” internalizado em mim pela nossa cultura. É um trabalho diário, duro, às vezes, chato, cansativo, mas humano e – tenho certeza – cristão.

Além disso, não podemos nos esquecer de que a Língua é viva. É viva porque está em uso e em plena transformação, pois seus usuários, inseridos em um determinado tempo e espaço, a adaptam e a moldam de acordo com as suas necessidades. Logo, se palavras e expressões, antes usadas sem uma reflexão maior, são consideradas, hoje, ofensivas a alguém ou a algum grupo, acho que realmente vale repensar o uso delas, principalmente quando esse questionamento parte de pessoas que professam uma fé cujo princípio é o Amor, cujo caminho é Jesus, que deu a vida pelo outro, por mim, por você que crê e, com certeza, por aqueles que as nossas palavras, nossos atos, nossos pensamentos e omissões diminuem e menosprezam.

Termino, então, meu posicionamento, complementando a passagem bíblica usada na música, com alguns versículos anteriores, com destaque ao 17 (Isaías 1, 15-18):

¹⁵Quando estendeis vossas mãos, eu desvio de vós os meus olhos; quando multiplicais vossas preces, não as ouço. Vossas mãos estão cheias de sangue. ¹⁶Lavai-vos, purificai-vos. Tirai vossas más ações de diante de meus olhos. ¹⁷Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem. Respeitai o direito, protegei o oprimido; fazei justiça ao órfão, defendei a viúva. ¹⁸“Pois bem, justifiquemo-nos” – diz o Senhor –. “Se vossos pecados forem escarlates, se tornarão brancos como a neve! Se forem vermelhos como a púrpura, ficarão brancos como a lã!”

Espero que cada um de nós, em sua fé ou princípios, consiga abrir seu coração e sua mente, neste Natal, para que possamos reconstruir nossa sociedade com base no amor, na compaixão, no respeito e na integração de todos. A nossa língua materna pode ser um excelente começo para desatarmos os nós existentes e fazermos novos laços.

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