Lucíola, Anitta, o feminismo liberal e os homens de bem

Eu já escrevi sobre o romance Lucíola, de José de Alencar, fazendo uma analogia com o jeito de o homem agir livremente sobre o corpo da mulher em nossa sociedade, a partir do abjeto “Mamãe Falei”. Você pode ler o primeiro texto aqui.

A sensação que tenho, porém, é que estou acordando lentamente em um mundo que, até bem pouco tempo, eu não enxergava com lentes de grau. Havia uma miopia que, por mais que eu tivesse alguns instantes de consciência, não me permitia vislumbrar, de fato, a realidade. Ela sempre aparecia para mim meio nebulosa. O motivo disso? Ouso dizer: origem e criação.

Os graus de consciência também variam. No entanto, me assusto cada vez que enxergo algo que sempre esteve na minha cara. “Como não tinha percebido antes?” Volto, então, por esse motivo, ao clássico romance romântico Lucíola. Relê-lo, quando estamos em um momento político com tentativas constantes de ações totalitárias que se forjam por meio de um neoconservadorismo puritano, me permitiu enxergar com base em quais princípios nossa sociedade se formou e se reproduziu até hoje. Quando me lembro dos absurdos que rolaram na Internet com relação às falsas imagens e análises de livros didáticos, de histórias infantis e às absurdas mamadeiras de piroca, para rechear o imaginário de uma parcela da população ressentida de perda de seu espaço e levar junto todo um outro grupo de pessoas simples, amedrontadas em sua visão de mundo, mas que não têm repertório para contra-argumentar e verificar a veracidade de tais denúncias, me pergunto sobre quão forte e moralizador, em um contexto patriarcal, se deu a construção de nossa Nação pela Literatura, sobretudo Romântica.

Para quem não lembra ou não leu, a personagem principal de Lucíola se tornou Lúcia depois de ter sido estuprada por um vizinho bem mais velho, quando ela pedia ajuda para por comida e remédios em casa a fim de salvar a vida de seus pais e irmãos que estavam morrendo de febre amarela. Depois de salvá-los, porém, foi expulsa de casa pelo próprio pai que deveria defendê-la e protegê-la. Ele a culpou e a condenou, sem pena, pelo que ocorrera. (E não é que ainda hoje a vítima é vista como culpada?!) Vendo-se sem casa, sem família, sem dinheiro, Maria da Glória (nome de batismo da personagem) recorre a uma mulher da vida que a acolhe e tudo lhe ensina. Assim, morre a menina, e nasce Lúcia, a prostituta.

Um pequeno parênteses… As moças bem nascidas, protegidas em suas casas, sempre tendo a quem recorrer mesmo quando fazem algo errado (nas classes mais altas quase sempre se arranja uma solução para esconder algum “deslize”), muitas vezes olham para essas mulheres e dizem que elas são isso ou aquilo porque quiseram, pois sempre há escolhas. Mal sabem elas – porque nunca precisaram saber, nem nunca sentiram fome, frio ou dor, sem que fossem acalentadas – que há situações na vida em que não há como escolher simplesmente porque não há opções, a não ser o precipício em que caem. (Nossa! Eu até me arrepio quando me dou conta de que já pensei assim também como essas “moças bem nascidas”.)

Voltando à Lúcia, ou melhor, à Lucíola, o romance, pergunto:

O que, nesses anos todos em que o livro vem sendo adotado como um representante clássico do Romantismo Brasileiro nas escolas, estamos aprendendo com ele?

Segundo a sociedade patriarcal do conservador José de Alencar, reproduzida até bem pouco tempo, aprendia-se, ou melhor, ensinava-se às moças leitoras (desde aquelas da burguesia emergente do século XIX) que o correto seria se manter sempre “bela, recatada e do lar”. E que, para qualquer moça que saísse da linha, a condenação – morte, exílio ou loucura – era a saída.

Mas essa leitura ainda permanece? O que as lentes em um mundo que vem, para desespero dos conservadores, descortinando as linhas e as entrelinhas de um discurso moralista nos mostram hoje?

Embora o romance seja estudado com foco na Escola Literária, impedindo, muitas vezes, uma análise mais profunda das questões sociais aos olhos da atualidade, já se ouvem questionamentos e incômodos, principalmente, de jovens leitoras de hoje. Afinal, percebe-se claramente a diferença nos atos. Está explícito que homens são criados livres, podendo fazer o que querem e bem entendem com os corpos das mulheres – sejam elas suas filhas, irmãs, esposas. Quando pobres, nem respeito ao pai precisa existir. Usar e abusar é simples, fácil e permitido. Depois, eles seguem suas vidas, sem olhar para trás, sem punição alguma e ainda com muitas histórias para contar e fazer rir outros amigos iguais a si (até porque, desde que as conversas não saiam do meio masculino, tudo é normal e permitido, não é mesmo?).

Mas onde está a revolta de uma sociedade tão conservadora com um livro que mostra abuso e prostituição?

Não há.

Sabe por quê?

Porque as meninas devem continuar usando rosa, e os meninos, azul. Simples assim.

É por essas e por outras que esses conservadores se revoltam tanto com uma mulher como Anitta. A ela, nessa sociedade míope, cabe, apenas, o papel de objeto sexual dos homens. Ela pode e deve fazer o que quiser para aguçar o desejo deles e, consequentemente, ser usada por eles. Entretanto, quando uma mulher assume as rédeas de sua vida, toma o controle de seu dinheiro, decide fazer com seu corpo o que quiser, o movimento que quiser, deixa de ser objeto e passa a ser sujeito. Se ela não se sujeita mais aos limites de machos que lhe coloquem o cabresto, tem de ser condenada, marginalizada, cancelada (morte virtual). Afinal, o corpo aberto ao escrutínio é um corpo sem valor (moral). Precisa ser rejeitado, rechaçado publicamente pelos próprios homens de bem que também o consomem, só que no privado, sempre escondidos, no máximo, entre seus pares, como sempre foi.

Chamo atenção, porém, para uma questão importantíssima. Embora eu defenda o direito de Anitta e outras cantoras que seguem o mesmo script serem o que quiserem ser, deixo aqui uma crítica. Mesmo com toda força e poder que Anitta já conquistou – poder do dinheiro, principalmente, em uma sociedade capitalista -, é preciso enxergar que ela ainda tem por trás de si uma indústria cultural masculina, que a produz, assim como produz tantas outras mulheres bonitas – porque sexo vende, e muito. E, com isso, o ciclo de mulheres sujeitadas se refaz. Afinal, só há uma Anitta, enquanto existe, em contrapartida, uma multidão de meninas que acham que podem porque Anitta pode, mas se tornam apenas presas “fáceis porque são pobres”, alimentando o paradoxal feminismo liberal de “meu corpo, minhas regras”, sem se darem conta de que só estão dizendo o “sim” que, no fundo, eles, os homens, tanto desejam.

O que percebo é que permanecemos, ainda hoje, em um ciclo vicioso que começa e termina no domínio e nas prioridades do homem e culmina no dinheiro que esse poder produz. E, no final, o dinheiro do macho é sempre endossado como uma conquista pela sua competência, pela sua coragem enquanto empresário e investidor; já os milhões conquistados pela fêmea não passam de um dinheiro “sujo” de alguém que se expõe, rebola e vende seu corpo para os olhos e desejos do mundo.

Infelizmente o que vejo é que estamos no século XXI com a mentalidade de formação do século XIX, que quase nada está deixando a dever à época das bruxas queimadas, mas, agora, em nossa Idade Mídia.

Quantas Lúcias ainda vamos condenar à morte?

Um comentário

  1. Eu li Lucíola há bastante tempo.
    De todos os livros do José de Alencar, acho o mais interessante.
    Não me recordava o motivo pelo qual tinha se tornado prostituta.
    Houve uma época que era leitura obrigatória para quem fosse prestar vestibular, acho que não é mais.
    Adorei teu texto.

    Curtido por 1 pessoa

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