WESTOVER, Tara. A menina da montanha: a trajetória real da americana que pisou numa sala de aula pela primeira vez aos 17 anos até a conquista do doutorado em Cambridge. 1ª ed. – Rio de Janeiro: Rocco, 2018.
Conheci, estupefata, por meio deste livro, a história de vida de Tara Westover, uma mulher que hoje, em 2020, está com 34 anos. Tara nasceu em Idaho, nos EUA, muito provavelmente em 1986. Digo muito provavelmente porque ela só foi registrada – e com uma certidão meio capenga – depois de alguns anos de vida. Seus pais não sabiam dizer nem o dia nem o mês em que ela nasceu (outros irmãos passaram pelo mesmo problema). É assustador pensar que não estou falando de uma história lá do passado, em um país considerado subdesenvolvido. Estas páginas vão nos mostrar uma história real, de uma família americana, numa época em que eu já era nascida. Em 1986, eu tinha 15 anos!
Logo no início somos informados de que não se trata de um livro sobre convicções religiosas. No entanto, tudo o que vemos e conhecemos sobre a vida de Tara e sua família, contado por ela mesma, está ligado a leituras com um viés fundamentalista da ideologia mórmon. Os pais da autora são radicais. Criam seus filhos longe de tudo que envolva a sociedade, os direitos e deveres civis. Eles não são registrados até terem necessidades reais, não frequentam escolas, não se consultam com médicos nem são socorridos em hospitais ou vacinados. Na criação que dão aos filhos há uma gigantesca teoria da conspiração que os leva a fugir de tudo que consideram suspeito, evitando, assim, todo tipo de registro, imposto e qualquer contato com o governo que, para eles, quer segui-los e dominá-los.
Com a ideia de que educariam os filhos em casa, ambos acabam negligenciando o básico e entregam aos filhos apenas o que consideram fundamental: os preceitos e dogmas religiosos, baseados em um conservadorismo extremo de regulação e repressão. O pai, o mais radical de todos, se considera um escolhido de seu deus para levar ao mundo a palavra. Ele se prepara, abastecendo-se de armas, gasolina e comida, para o “Fim do Mundo”, que está bem próximo:
O aprendizado em nossa família era totalmente autodirigido. Cada um podia ler o que quisesse aprender, desde que tivesse terminado com as tarefas [eram trabalhos da casa]. (…) e quando fiz 10 anos a única matéria que tinha estudado sistematicamente era o código Morse, porque papai insistia que eu soubesse. (p. 61)
Não vou detalhar a história porque é muito interessante ir desvendando o emaranhado dessa família. No entanto, conviver, mergulhada nessas páginas, com chocantes relações abusivas e teorias conspiratórias, com rótulos tão comuns no momento presente de nossa sociedade, me traz a triste percepção de que há muitas famílias e grupos fundamentalistas semelhantes em diversos aspectos à família de Tara e à sua religião aqui, bem pertinho de nós, hoje. Em várias páginas nos deparamos com ideias como “E você acha que os Illuminati não estão infiltrados na Igreja?” (p. 56); “Não pensa que o primeiro lugar aonde vão é a escola, onde podem criar uma geração inteira de mórmons socialistas?” (p. 57). Qualquer correlação hoje com teorias de marxismos culturais e escolas sem partido, direito a educação em casa… seria uma mera coincidência?!
Quando Tara consegue começar a se desvencilhar de toda essa sufocante estrutura para caminhar com as próprias pernas, depara-se com a realidade cruel de sua criação, de sua ignorância, de toda a lavagem cerebral porque passou a vida inteira. Não conhece, por exemplo, coisas básicas da História Ocidental, e o que conhece foi deturpado, partindo de premissas falsas, geradoras de conclusões erradas e enganosas. Será que eles também tinham uma espécie de “EUA Paralelo”?!
Só para deixar um gostinho e uma lembrança marcante para mim desta história, destaco um último trecho, que deu origem ao título desta minha resenha:
Com meu pai aprendi que livros eram para ser adorados ou exilados. Livros que eram de Deus, escritos pelos profetas mórmons ou pelos Pais Fundadores, não eram tanto para serem estudados, mas estimados como algo perfeito em si mesmo. Eu fui ensinada a ler as palavras de homens como Madison como um molde para encher com o gesso de minha própria mente, a ser formada pelos contornos de seu modelo impecável. Eu lia para saber o que pensar, não para aprender a pensar por mim mesma. Livros que não eram de Deus eram banidos; eram um perigo, poderosos e tentadores por sua astúcia. (p. 249)
Mais uma coisa só. Sobre os relacionamentos abusivos que mencionei, acho que a leitura do livro pode nos explicar um pouco o que ocorre com muitas meninas, meninos e mulheres adultas violentados e sem voz alguma para pedir socorro. Talvez isso proporcione alguma dose de empatia para olharmos, com mais cuidado, as vítimas que, muitas vezes, julgamos e torturamos com nossas ações e reações sociais preconceituosas e limitadas à vista do ponto do nosso mundinho.
É isso. Leitura concluída e extremamente válida.