Qual o real significado de defender a vida?
Que vidas concretamente estamos mantendo vivas?
Assisti a este vídeo há alguns dias e fiquei profundamente marcada.
O vídeo trata da desigualdade, mas acho que mostra bem o olhar que temos para as crianças que não pertencem ao nosso mundo, que não detêm os nossos privilégios. Será mesmo que com esta demonstração vamos continuar achando que não existem privilégios, que não somos privilegiados?! Pois é, acho que temos de pensar a respeito para ampliar nosso campo de visão. E se, além da desigualdade econômica (indicada no vídeo pela aparência com roupas, e higiene), pensarmos na realidade cruel a que muitas crianças são submetidas diariamente?
Será que já paramos para pensar (conseguimos imaginar?!) em que inferno crianças estupradas vivem?
Em que inferno crianças estupradas e grávidas vão continuar vivendo?
Em que infernos outras crianças nascidas de crianças estupradas viverão?
Lutar por vidas sem responsabilidade sobre elas; lutar por vidas sem lutar por mudanças imediatas nessa gigantesca desigualdade e no baixo acesso a informações básicas de sobrevivência neste mundo tenebroso; lutar contra o aborto, mas não abortar os próprios preconceitos e os próprios privilégios… Tudo junto e misturado num mesmo balaio me parece uma grande hipocrisia.
Todo dia abortamos uma criança quando não lhe damos direito à escolha, simplesmente porque onde ela nasceu, onde ela vive não há opções. Só pobreza e reprodução de estigmas.
Todo dia abortamos uma criança quando nos recusamos a ouvi-la, a adotá-la, a amá-la, quando a olhamos com medo, descaso ou nojo, quando a julgamos irresponsável, preguiçosa e a culpamos por estar onde está como se os nossos privilégios fossem conquistas nossas.
Todo dia matamos uma alma infantil quando a criança – tão pequena e indefesa quanto nossos filhos na mesma idade – recebe de nós apenas um “sai pra lá”, quando fechamos o vidro dos carros, quando protegemos desconfiados nossas bolsas e celulares ou atravessamos a rua para não chegarmos perto dela.
A vida é muito mais complexa do que parece para aqueles que acreditam que estão fazendo o bem carregando uma placa para dizer a uma sofrida desconhecida “Não aborte!” ou, ainda, “Assassina!”.
Ah… quantas travas ainda precisamos tirar de nossos próprios olhos, mas preferimos vociferar e meter o dedão na ferida alheia?! Deus não nos deu o livre arbítrio? O pecado e a fé não são relações pessoais, isto é, de cada indivíduo com Deus? Por que a religião tem de se meter nos direitos civis? Antes de gritar “Assassina!”, “Não ao aborto!” e “Baby lives matter!”, cuidemos das vidas que estão aqui sofrendo, passando fome, sendo estupradas, destruídas, mortas. Lutar pelo distante sempre foi mais fácil do que pelo concreto. Quando vamos sair de nossas lentes embaçadas para enxergar a cruel realidade do outro, da outra, de uma criança, na maioria das vezes, preta e pobre?
Para quem defende a vida acima de tudo – e de todos – há ações concretas a se fazer, no mínimo, simultaneamente à luta contra o aborto. Uma primeira coisa que está em nossas mãos e pela qual devemos lutar com toda a nossa força é o direito à Educação Sexual nas escolas. Quem acha que isso é pornografia, que vai antecipar a sexualidade, que existe mamadeira de piroca etc. ou que, simplesmente, não quer que os filhos aprendam sobre o assunto está, infelizmente, alimentando e oportunizando maiores espaços para que pedófilos atuem de forma protegida e silenciosa. Essas mesmas pessoas que defendem a criminalização do aborto estão acobertando possíveis crimes e implacáveis criminosos e abandonando as crianças mais vulneráveis nas mãos de seus algozes. Afinal, sabemos pelos dados que a maioria das crianças estupradas são violentadas por parentes próximos, dentro da própria casa. Se elas, então, dependerem da Educação Sexual feita em casa, pelos seus responsáveis e parentes, estarão desprotegidas e sem chances de denunciar os abusos!
Por essa perspectiva, pergunto: quem está abortando quem?! Que vida estamos protegendo? Quem são os responsáveis pelo que nossos olhos se negam a enxergar?
Sei que o tema é espinhoso, mas não podemos ficar em análises simplistas condenatórias a partir de uma fé religiosa do sofá da sala ou, quando muito, ajoelhados na frente de um hospital ou num grupo da igreja com o terço ou a cruz na mão. É preciso que enxerguemos a realidade que não se faz enxergar pelo nosso ponto de vista nem pela vista que temos do nosso ponto.
Tenho uma filha e um filho já adultos, mas entre eles tive uma gravidez que perdi em um aborto espontâneo. Sei, até hoje, 24 anos depois, o dia e a hora em que tudo aconteceu. Nunca esqueci. Sempre penso em como teria sido se tivesse vingado, mas também sei que, se esse bebê tivesse vindo ao mundo, muito provavelmente o meu filho não teria nascido. O que é certo e errado, então? Quais são os planos de Deus para nossas vidas?
There are more things in heaven and earth, Horatio, Than are dreamt of in your philosophy.
Shakespeare
(Tradução livre: “Há mais coisas no céu e terra, Horácio, do que foram sonhadas na sua filosofia”.)