Escrevo esta reflexão hoje porque cometi um erro horrível nesta semana em um grupo do qual participo. Uma pessoa nova (estamos todos nos conhecendo ainda) se apresentou com um nome masculino enquanto, no registro de seu número de celular, aparecia um nome feminino. Minha fala levou a um entendimento de que eu estaria brincando de forma pejorativa com tal questão. No privado, um dos integrantes do grupo falou educadamente comigo e pontuou o meu erro. Fiquei desconcertada porque não havia feito com tal intenção e sequer passou pela minha cabeça qualquer possibilidade de que aquilo pudesse gerar algum mal-estar ou proporcionar leituras outras. Escrevi ao grupo me desculpando pelo erro, mas ainda estou com isso na cabeça. Acho que – talvez por já vir há algum tempo pensando sobre todas essas super bem-vindas transformações e aprendizagens – acendeu-me uma luz e consegui organizar algumas ideias sobre o assunto. Então, é sobre isto que pretendo falar agora: sobre a formatação (uso de propósito um termo bem específico da área de computação) de nossas mentes; sobre o processo longo e complexo de reconfiguração de nossos sistemas operacionais.
Tenho pensado muito nas diversas questões que vivemos na atualidade não só para ser uma pessoa melhor, mas também para (re)conhecer o mundo em que vivemos e me adaptar às situações que sempre existiram, mas nos eram negligenciadas, negadas, apagadas. Digo isso porque, em minhas reflexões, tenho pensado sobre como ressignificar no mais recôndito de meu inconsciente (nem sei se o termo correto aqui é “inconsciente”) o que, na aprendizagem racional (consciente), considero certo, importante e fundamental, mas lá dentro toda a “formatação” que recebi, ao longo de meus quase 50 anos, foi construída ratificando – em graus distintos de peso e intensidade –, senão o contrário, ao menos, parte do contrário, com alguns preconceitos e estereótipos. Não sei se estou conseguindo me fazer entender, mas acho que tenho um exemplo que pode vir a ilustrar isso.
Fui obesa por toda a minha vida até 5 anos atrás quando fiz cirurgia bariátrica. Sofri, ao longo da minha juventude, todo tipo de preconceito ligado ao corpo fora dos padrões estéticos de magreza. Cheguei a me desesperar por não conseguir passar em roleta de ônibus; chorei várias vezes quando, entrando em loja de roupa, era recebida com desprezo invalidando meu potencial de compra ao ser informada de que não havia nada ali para mim; cansei de ser a melhor amiga, mas nunca uma mulher atraente ou uma mulher com a chancela social de bem-sucedida por causa da aparência; além de ter me privado de muitos programas, de muito sol, de alguns encontros em praias e clubes por vergonha do meu corpo. Tive, no entanto, a oportunidade de experimentar nos últimos anos o outro lado. Embora inebriante e potencialmente perigoso pelo deslumbramento que pode causar, não é nada fácil assimilar tamanha transformação. Minha cirurgia me modificou tanto, que demorei a me identificar no espelho, demorei a reconhecer meu corpo e a entender os espaços que ocupava ou as roupas que em mim cabiam. É uma aprendizagem que se faz dia a dia durante um longo tempo. Nesse processo, cometi inúmeros erros, para o bem e para o mal. Todos com efeitos diretos em minha própria vida, mas todos eles também geraram frutos de percepção do mundo, do meu entorno e de mim mesma, frutos esses que não tenho como mensurar ou explicar completamente, mas que venho colhendo ao longo desses anos e, exatamente hoje, um deles parece estar amadurecendo. Vou explicar.
A gente fala e ouve falar muito em empatia hoje em dia. Conceitua, exemplifica, mas acho que, para entender por completo e ser empático de verdade, o caminho é imensamente longo. Talvez seja preciso mais do que se colocar no lugar do outro. Estou achando que é preciso um exercício intenso de reconfiguração do que fomos até agora.
Por que “reconfiguração”?
Porque, quando gorda, sofri com o preconceito e com a falta de empatia para comigo, para com meu sofrimento, vindo, inúmeras vezes, das pessoas mais próximas e que – tenho certeza – mais me amavam. Entretanto hoje, que estou magra, por mais que eu não queira, acabo reproduzindo em pequenos gestos, olhares ou falas muitos desses mesmos preconceitos que me torturaram – e só depois que faço é que me dou conta ou, muito provavelmente ajo ainda sem nem me dar conta. Sei o que estou falando porque já me peguei fazendo isso contra uma das pessoas que mais amo nesta minha existência e que está, para os padrões impostos, acima do peso.
Por que faço isso, então, se já vivi na pele esse sofrimento? Cadê a tal empatia?!
Acho que a resposta que estou tentando entender vem de algo que vale para vários temas. Eu reproduzo esses preconceitos porque a gordofobia está entranhada em minha formação, na construção de significados e no grau das lentes que sempre me deram para meus olhos. Isto é: toda a configuração de minha mente teve como base imagens e ideias corrompidas. Minha mente já foi tão massivamente simbolizada por imagens, relações, contextos que desabonam o gordo que, mesmo tendo “feito o dever de casa racionalmente” – e mais! – mesmo tendo aprendido na teoria e na prática que isso é errado, e tenha sofrido por 44 anos na pele o preconceito, eu ainda não consegui reformatar, reconfigurar, ressignificar completamente, no meu (in)consciente, tal aprendizagem. Daí os meus erros ainda presentes volta e meia.
E o que isso tem a ver com outros temas, outros preconceitos?
Tudo. Por exemplo, eu não sou racista – aliás, acho que atuo como antirracista; não sou homofóbica; não sou transfóbica (acredito que podemos colocar aqui todos os preconceitos que conhecemos, mesmo os que acreditamos que não temos). Assumo que não sou nada disso com a minha racionalidade, com a consciência do que considero certo porque acredito que qualquer ser humano, independente de raça ou orientação sexual, tem os mesmos direitos. Entretanto, nunca convivi, por exemplo, com uma pessoa trans (dou esse exemplo porque foi o que gerou esta reflexão). Já li e vi filmes sobre trans (considero a Arte fundamental nesse processo de aprendizagem e de desenvolvimento da empatia), mas, diante do que falei no grupo e repensando outras possíveis gafes, erros e atitudes preconceituosas, acho que o caminho a percorrer é ainda gigante.
O que eu estou tentando dizer é que, por mais que eu tenha, por meio da minha capacidade intelectiva, a percepção e a aceitação das diferenças e das transformações sociais (que, por sinal, já vêm tarde), a minha capacidade de assimilação no processo de transformação daquilo que está registrado lá dentro é mais lenta e mais complexa. É nesse ponto que acho que, mesmo as pessoas mais abertas às transformações, cometem erros e não se tocam de barbaridades que ainda falam. E acho que isso é algo que perpassa por todos nós em temas distintos e com dosagens distintas.
Que fique claro, porém, que não estou aqui querendo apresentar uma justificativa para erros e crimes. Somos adultos e temos de arcar com nossos atos e palavras. Sempre! No entanto, acho que isso explica muitos erros, em graus distintos de proporção, que ainda são cometidos por pessoas que são a favor dos direitos civis a todos e do total e irrestrito direito de ir e vir e ser o que se é.
Por isso, nesta minha reflexão, venho pensando na necessidade de um processo de construção contínua dessa aprendizagem. Numa época em que estamos vivendo linchamentos e cancelamentos virtuais, como seria se, dependendo do caso, houvesse uma conversa, uma troca como a que me foi possibilitada pela pessoa que me contatou no privado?
Por isso deixo aqui um pedido de quem está em total entrega para novas aprendizagens: se alguém que você conhece cometer algum erro nessas áreas, por mais que seja difícil e até doloroso, tentem conversar e mostrar esse erro. Muitas vezes, quem erra só precisa de uma ajudinha para desembaçar as lentes com que estamos acostumados a ver e a viver neste mundo até há pouco, cruelmente tão binário, tão monocromático, tão limitado e limitante, principalmente para os que vêm, como eu, de um olhar que parte de inúmeros privilégios tão invisibilizados para que não os vejamos como privilégios, mas como normais. Com certeza, agora observarei mais atentamente o que sai de dentro de mim. A autoavaliação constante é um processo transformador.
Mais uma vez termino o meu texto pedindo que me avisem caso tenha cometido algum erro ou impropriedade. Estou em constante aprendizagem e reflexão sobre a vida e o viver. Novos tempos exigem novas pessoas, novos olhares, novas lentes.