Em minha jornada para reconhecer a sociedade em que vivo, em outras palavras, em minha busca para aprender aquilo que foi coletivamente omitido, negligenciado ou ensinado por um único viés dos inúmeros vieses que existem, tenho procurado, neste momento, ler o mundo pelos olhos das negras e dos negros, já que ainda hoje prevalece em minhas referências bibliográficas de formação uma maioria esmagadora de homens brancos. Alguns podem dizer que isso é bobagem, que é influência do “marxismo cultural”, que é coisa da esquerda, que não devo levantar bandeiras alheias… sei lá. São tantos rótulos hoje em dia, geradores de preconceitos, de barreiras e de novos tabus, que, ao contrário do que pode ocorrer para muitos que, temerosos de “serem contaminados”, se afastam, eu, curiosa, mais me aproximo, mais aprendo e muito mais me surpreendo com a minha ignorância e os meus inúmeros preconceitos até então inconscientes, na invisibilidade de meu status quo.
Ver a história por outros olhos é confirmar que nunca haverá uma história única, por mais que queiram nos fazer engolir, nunca haverá uma homogeneização de um povo, de uma raça. Aliás no livro Contra o ódio, de Carolim Emke, ela chama atenção para esse olhar (eu já fiz três publicações desse livro aqui, aqui e aqui). Destaco, novamente, esta passagem:
Quem se encaixa na norma pode cair no erro de acreditar que a norma não existe. Quem se assemelha à maioria pode cair no erro de acreditar que a identificação com essa maioria que dita a norma não tem importância. Aqueles que estão em conformidade com a norma podem não perceber como ela exclui ou degrada os outros. Aqueles que estão em conformidade com a norma geralmente são incapazes de imaginar seus efeitos, porque sua própria aceitação é tomada como uma obviedade. (…)
Assim, devemos prestar muita atenção quando aqueles que não estão em conformidade com a norma contam como se sentem no seu dia a dia, sendo excluídos e desprezados – e é importante se colocar em sua situação, mesmo que isso nunca tenha acontecido conosco.
Quem for abordado pela polícia uma primeira vez sem razão aparente pode até se sentir desconfortável, mas dificilmente ficará irritado. Mas quem é importunado repetidas vezes sem motivo algum, quem tem de mostrar repetidamente seus documentos, quem precisa ser revistado várias e várias vezes, para essa pessoa uma inconveniência ocasional se transforma em um insulto sistemático. Isso não só tem a ver com certas experiências de racismo institucional ou violência policial, mas também com desrespeitos mais sutis que ocorrem em menor escala. (Emcke, p. 85)
Para aqueles que consideram racismo mimimi, para aqueles que não se consideram racistas embora saibam que o racismo existe (sempre é o outro que é racista), para aqueles que consideram plausível que os negros tenham direito ao espaço que estão conquistando (porque somos iguais), mas criticam suas vozes reclamantes, como se pudessem ser o que são, mas sem criar transtornos (eu já ouvi isso e juro que me agonia a não percepção de incoerência), saibam que a vida não é tão simples assim, e ouvir as dores do outro, sair daquele ponto de vista de formação tradicional eurocêntrica pode nos levar a enxergar um mundo até então desconhecido. Não ficar preso a um ponto de vista nos permite alcançar a vista de vários pontos distintos. E é isso que estou buscando.
Comecei a escrever este texto com a intenção de resenhar o livro Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, mas meu coração me levou para essas reflexões soltas. Às vezes, me sinto uma idiota mostrando tamanho desconhecimento sobre um mundo tão denso e complexo, mas também consigo enxergar que nunca é tarde para sair do entorpecimento no qual fui criada. Eu, branca, classe média-alta, tornei-me professora por rebeldia, pois meu pai me disse um dia que considerava uma profissão menor devido ao desprestígio social e à baixa remuneração. Eu deveria fazer Direito ou Economia. Até tentei Economia, mas não rolou. Venci como professora e hoje corro contra o tempo porque encontro lacunas gigantescas em minha formação, a maior parte delas porque não havia uma necessidade real para desenvolver. Na graduação, nas duas pós-graduações lato sensu, no Mestrado ou no Doutorado, eu não tenho lembrança alguma de ter estudado algo mais concreto, mais robusto, referente às minorias, à literatura ou à cultura afro-brasileira e africana. Por quê? Primeiro porque não fazia parte da grade das universidades; segundo porque como nunca vivi ou sofri na pele as questões raciais, simplesmente desconhecia tal necessidade, embora já tivesse vivenciado algumas experiências de racismo com outros mesmo que próximos, mas… Não seria algo normal? Da vida? Problematizar para quê?! Bobagem. Era só seguir a normalidade. A vida é assim mesmo. Faz parte.
Só que não!
Somente anos mais tarde comecei a tomar conhecimento de todo um arcabouço literário (que vem crescendo nos últimos anos), mas sempre tinha uma visão “crítica”, misturada entre cultura e folclore; virtude e pecado; valor maior e menor. Percebo hoje que nada mais era do que uma imposição cultural totalmente irrefletida, como diz Fanon, porém repetida com a naturalidade da invisibilidade de meus privilégios bem explicada por Emcke no trecho destacado acima. Espero seguir nesse processo de aprendizagem, de desmistificação e de desvelamento daquilo que minha cegueira não me permitia enxergar.
Enfim, posso afirmar com convicção, como consta na obra de arte da foto desta publicação, que “A Arte Salva”. Ela está me salvando da ignorância e me permitindo desenvolver empatia, não por uma superioridade cristã, mas por uma igualdade humana.
Lembro sempre que estou aqui para aprender. Se tiver cometido algum erro, por favor me ajude a crescer.
Em breve farei a resenha do livro Pele negra, máscaras brancas.