Falsa acusação: uma história verdadeira, Christian Miller e Ken Armstrong

Se, alguma vez na sua vida, ao ouvir uma notícia de estupro, já passou por sua cabeça algo que desabonasse a vítima (como sua roupa, onde estava e a que hora ou as escolhas que fazia…), leia este livro. Se isso nunca aconteceu, mas você tem uma sensação de que há mais estupros do que os registrados e investigados ou ainda que as investigações não ocorrem como deveriam, leia também.

Falsa acusação: uma história verdadeira é daqueles livros que trazem à tona o que uma sociedade conservadora – feita e dirigida por homens brancos – tem de pior e quer manter, comodamente, debaixo do tapete: seus preconceitos arraigados, baseados em uma visão de que o caráter e a dignidade de um homem (“homem de bem”) não podem ser destruídos facilmente por qualquer mulher. Afinal, uma mulher é sempre um ser dúbio e questionável, não é mesmo?

Nos Estados Unidos, não há estatísticas sobre quantas mulheres foram acusadas de ter feito denúncias falsas de estupro para mais tarde terem seus relatos comprovados graças ao surgimento de alguma prova. Não existe um dado sobre isso. Mas até mesmo o que aconteceu com Marie – um exemplo extremo em que a perseguição chega às vias de fato e a vítima não apenas é taxada de mentirosa, como também é acusada criminalmente por isso – não é um caso isolado. (p. 228)

Os dois repórteres autores deste livro, Christian Miller e Ken Armstrong, expõem, com muita clareza e força, como o poder naturalizado nas mãos dos homens levou a uma construção de juízos de valor contra as mulheres, os quais assimilamos desde sempre e reproduzimos por anos sem questionar, justamente, por sua invisibilidade (valores esses que as próprias mulheres acatam e reproduzem repletos de preconceitos contra aquelas que julgam desonrar o “papel social feminino”). As mulheres, como minoria na escala de poder, sofrem e sempre sofreram nesse processo. Ainda bem que isso está mudando. Muito devagar, mas já é um começo.

A única solução real que vejo para que casos como o narrado não se repitam é o desenvolvimento de uma sociedade com uma participação concretamente mais equilibrada:

(…) O número de policiais do sexo feminino nos Estados Unidos gira em torno de 100 mil, ou cerca de 11% do total de agentes da lei. A atuação policial continua sendo uma área majoritariamente masculina, tomada por machões, hierarquizada e militarista. As agentes policiais ainda são uma raridade nesse cenário. (p. 110)

E, quando falo em equilíbrio, penso em todos os sentidos. Essa história verídica contada aqui me remeteu à história, também real, dos meninos negros que foram presos e condenados por estupro de uma mulher branca no Central Park, em NY, (ver minissérie  “Olhos que condenam”, no Netflix). Os meninos, similarmente de uma minoria, foram condenados pelo trabalho porco, realizado por uma investigadora branca. Se, neste livro que resenho, homens brancos desconsideram o depoimento de uma mulher estuprada, no filme, uma mulher branca, com apoio de homens igualmente brancos, convence o tribunal de sua verdade, a verdade que lhe é conveniente. É o velho jogo de quem detém o poder sobre os outros. E, nessa escala, vidas vão sendo ceifadas.

Vale muito a leitura desse grande relato investigativo. Perscrutar os protocolos de investigação, o desenvolvimento, as aprendizagens e os erros dos policiais, assim como os preconceitos e suas fontes de origem pode nos deixar ora estarrecidos, ora revoltados. Gostaria de conhecer dados sobre o tema aqui no Brasil. No ano passado li o tão igualmente chocante Mulheres empilhadas, de Patrícia Mello. Vale também a leitura.

 

Miller, T. Christian & Armstrong, Ken. Falsa acusação: uma história verdadeira. Rio de Janeiro: LeYa, 2018.

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