A elite do atraso (2017) é o segundo livro de Jessé Souza que leio. Embora esteja bem interessada e aberta às novas formas de ler a nossa sociedade por meio das descobertas e análises deste sociólogo tão atuante no momento, considero a minha primeira leitura, A ralé brasileira (2009), muito mais cativante por conter a apresentação de uma pesquisa bem específica e demarcada sobre a subclasse social e, naturalmente, a subgente que nela se encaixa. Souza cria o conceito de “ralé” e o faz com bastante propriedade acadêmica.
O autor traz no livro de 2017 suas constatações anteriores, ratificando-as para endossar a sua tese de que o patrimonialismo é o grande gerador de nossas mazelas e a sociedade escravocrata brasileira constituiu o ódio ao pobre, que se confirma no ódio racial tão naturalizado em nossa imensa desigualdade social:
(…) O que precisa ser compreendido de uma vez por todas é que ser “gente”, ser considerado “ser humano”, não é um dado natural, mas, sim, uma construção social. Existem características básicas, como consensos sociais compartilhados, que precisam ser universalizadas para que a igualdade jurídica formal tenha alguma eficácia.
Sem a efetiva generalização de uma economia emocional que permita o aprendizado escolar e o trabalho produtivo, cria-se uma classe de “sub-humanos” para todos os efeitos práticos. Pode-se chacinar e massacrar pessoas dessa classe sem que parcelas da opinião pública sequer se comovam. Ao contrário, celebra-se o ocorrido como higiene da sociedade. São pessoas que levam uma subvida em todas as esferas da vida, fato que é aceito como natural pela população. A subvida só é aceita porque essas pessoas são percebidas como subgente merecem ter subvida. Simples assim, ainda que a naturalização monstruosa no dia a dia nos cegue quanto a isso. (2017, p. 153)
Neste livro, Jessé Souza discute o conceito de patrimonialismo e o papel de nossas elites: a que domina o capital econômico (classe alta) e a que domina os capitais cultural e social (classe média), e já aponta uma nova divisão para a classe média que, pelo que entendi, vai ser destrinchada como resultado de nova pesquisa no livro A classe média no espelho (2018). Vou ler também.
O problema que vejo em A elite do atraso e que me incomoda – principalmente porque considero que interfere no valor do gigantesco trabalho que esse sociólogo tão atual está fazendo – é que ele se mostra bastante passional (não enxerguei isso em A ralé brasileira e, talvez por isso, até o momento seja o meu preferido). A passionalidade a que me refiro é o seu posicionamento político-partidário. Embora já tenha assistido a várias entrevistas e debates dele durante a pandemia em que demonstre um descontentamento com o PT e com a esquerda tão desarticulada, é explícita a defesa que ele faz dos governos anteriores em vários de seus escritos. A minha crítica a esse posicionamento tão acirrado vem da natural desvalidação de suas teses por inúmeros potenciais leitores, o que, me parece, acaba inviabilizando um maior acesso a essa proposta inédita de leitura e entendimento da nossa herança social por outro prisma. Acho uma pena, porque, mesmo com algumas ressalvas, a revisão que o autor traz está fazendo, para mim, um sentido e tanto.
Outra questão que pode afastar alguns leitores é que o autor se repete em várias situações. Como professora, porém, enxergo isso como um cacoete natural de quem atua em sala de aula com tanta intensidade. Vejo Jessé Souza escrevendo para seus leitores como nós, professores, damos nossas aulas: com muito didatismo e explicações repetidas, ora com as mesmas palavras, ora com outras, para que os alunos entendam o que se está ensinando. Daí vem, a meu ver, a necessidade de o professor-escritor – que está apresentando não só uma tese totalmente nova, mas também está desfazendo pressupostos teóricos tão arraigados na formação da elite cultural brasileira pelos icônicos Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire e Raimundo Faoro – explicar, explicar e retomar volta e meia a mesma explicação com outras palavras ou até com as mesmas.
Entenda que, apesar de nos parágrafos anteriores eu ter apresentado alguns pontos, para mim, negativos em A elite do atraso, considero a leitura de fundamental importância para (re)pensarmos, por visões distintas, a sociedade em que vivemos. Não é à toa que vou continuar lendo os seus livros e ouvindo suas entrevistas e debates, que têm sido mais frequentes nesse período de isolamento social com inúmeras lives e palestras online.
Resumindo a essência do que entendi em minhas aprendizagens (que ainda estão se constituindo e se articulando), Jessé Souza, nessa obra, refuta a nossa construção social com base na herança patrimonial portuguesa (Sérgio Buarque e Faoro), refuta a cordialidade (Sérgio Buarque) geradora do “jeitinho brasileiro” (de Roberto Da Matta) (ver p. 92-93) e a cultura racista (Gilberto Freire). Ele defende a nossa herança com base na sociedade escravocrata criada e desenvolvida no Brasil, porque em Portugal não houve a escravidão que se instaurou e perdurou efetivamente por quatro séculos aqui, onde ainda hoje vivemos os seus reflexos. Tudo isso o leva a desenvolver a tese de que o caminho da corrupção não é intrínseco ao Estado embora haja um interesse maior para que a população pense isso. Ao longo da obra, ele delineia as diferenças entre as classes sociais, trata da invisibilidade dos privilégios e da meritocracia como forma de validar as conquistas de uns e facilitar a condenação como vagabundos daqueles que não conseguem conquistar espaço e reconhecimento social, a fim de tirar das costas dos privilegiados o peso da desigualdade. Jessé também critica e até condena de modo contumaz a imprensa, principalmente a Globo, como parte intrincada na construção do imaginário social sobre o bem e o mal, os corruptores e os corrompidos, os salvadores da pátria e os inimigos.
Enfim, o sociólogo é profundamente crítico, corajososo e bastante audacioso em sua empreitada. Mesmo que possamos fazer algumas ressalvas às suas teses, há bastante coerência no que apresenta.
Eis aí um último trecho transcrito que organiza uma parte do pensamento desse sociólogo brasileiro contemporâneo:
Atribuiu-se muitas de nossas características à dita herança portuguesa, mas não havia escravidão em Portugal. Somos, nós brasileiros, portanto, filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família específico, uma Justiça específica, uma economia específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força para acumular capital, como acontece até hoje, e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana. Isso é herança escravocrata e não portuguesa. O patrimonialismo, percebido como herança portuguesa, substitui a escravidão como núcleo explicativo de nossa formação. Essa é a sua função real. Por conta disso, até hoje, reproduzimos padrões de sociabilidade escravagistas, como exclusão social massiva, violência indiscriminada contra os pobres, chacinas contra pobres indefesos que são comemoradas pela população, etc.
Mas isso ainda não é o pior. O patrimonialismo esconde as reais bases do poder social entre nós. Ele assume que interesse privado é interesse individual privado, de pessoas concretas, as quais se contraporiam aos interesses organizados apenas no Estado, suprema estratégia de distorção da realidade. Uma noção de senso comum do leigo que não percebe os interesses privados organizados no mercado e sua força, ou seja, que não percebe, em suma, como o capitalismo funciona. Daí decorre a noção absurda, mas tida como verdade acima de qualquer suspeita entre nós: a noção de que a elite poderosa está no Estado, com isso invisibilizando a ação da elite real, que está no mercado, tanto nos oligopólios quanto na intermediação financeira. (2017, p. 208)
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. 3a ed. São Paulo: Editora Contracorrente, 2018. (Resenha aqui.)