“É tão fácil ignorar a dor do outro, que somos até capazes de infligir ou ampliar essa dor sem que isso nos comova”, escreve Elaine Scarry em seu texto “A dificuldade de imaginar outras pessoas”. (Emcke, p. 79)
Acho que muitos cristãos e os que se autodenominam “homens de bem” ainda não se deram conta de que talvez tenha sido Jesus, em sua reação ao iminente apedrejamento de Madalena, quem criou o que hoje chamamos de Direitos Humanos.
Como nos conta João em seu Evangelho, no capítulo 8, escribas e fariseus levam a Jesus uma mulher que tinha sido pega em adultério. Veja: homens pegam uma mulher em adultério e a condenam de imediato, mas o homem com quem ela estava não aparece na história, afinal, era… homem! (Isso é só mais um detalhe de preconceito contra as mulheres. Não podemos ler sem ter em mente que a história é feita e contada por homens.)
Bem, pela lei de Moisés, ela deveria ser apedrejada (olha o feminicídio!). Então, eles perguntam a Jesus o que devem fazer. E Jesus lhes dá a resposta crucial: “Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra” (Jo 8, 7) O que vemos aqui é que Jesus, em sua sabedoria, interveio e mostrou que aquela mulher tinha tanto direito à vida quanto qualquer um daqueles que se consideravam melhores do que ela. Ele traz para reflexão o valor do ser humano. Sendo mulher ou homem, todos têm o mesmo valor; por conseguinte os mesmos direitos.
Da mesma forma precisamos pensar hoje nas pessoas que são (continuam sendo) condenadas – coletivamente – pelos atuais “homens de bem” a uma sub-vida e consideradas perigosas, criminosas, subumanos. Carolin Emcke, no livro Contra o ódio, nos alerta sobre isso:
Quem se encaixa na norma pode cair no erro de acreditar que a norma não existe. Quem se assemelha à maioria pode cair no erro de acreditar que a identificação com essa maioria que dita a norma não tem importância. Aqueles que estão em conformidade com a norma podem não perceber como ela exclui ou degrada os outros. Aqueles que estão em conformidade com a norma geralmente são incapazes de imaginar seus efeitos, porque sua própria aceitação é tomada como uma obviedade. Mas os direitos humanos são para todos. Não apenas para aqueles que são considerados semelhantes. E, por isso, é importante estar ciente de que tipos de desvio, de quais formas de alteridade são definidas como relevantes e, portanto, suscetíveis de participar da sociedade e de merecer respeito e reconhecimento. Assim, devemos prestar muita atenção quando aqueles que não estão em conformidade com a norma contam como se sentem no seu dia a dia, sendo excluídos e desprezados – e é importante se colocar em sua situação, mesmo que isso nunca tenha acontecido conosco.
Quem for abordado pela polícia uma primeira vez sem razão aparente pode até se sentir desconfortável, mas dificilmente ficará irritado. Mas quem é importunado repetidas vezes sem motivo algum, quem tem de mostrar repetidamente seus documentos, quem precisa ser revistado várias e várias vezes, para essa pessoa uma inconveniência ocasional se transforma em um insulto sistemático. Isso não só tem a ver com certas experiências de racismo institucional ou violência policial, mas também com desrespeitos mais sutis que ocorrem em menor escala. (Emcke, p. 85)
Emcke, Carolin. Contra o ódio. Editora Âyiné. 2020. p. 79, 85.
(Estou aqui, pensando alto, sempre com a intenção de aprender. Se cometer algum erro, peço que me ensinem.)