Como disse que faria na publicação anterior, segue mais um trecho transcrito do livro que acabei agora de ler. Ele é fundamental para entendermos o reducionismo de práticas de exclusão e de ódio criados e vivenciados por tantos e que vêm aumentando e se propagando por meio das redes sociais. Os grifos em negrito são meus.
A ideologia que leva ao ódio em Clausnitz não é produzida apenas em Clausnitz. Não é fabricada apenas na Saxônia. Ela é resultado de todos aqueles contextos na internet, em fóruns de discussão, em publicações, em talk shows, em textos musicais, nos quais os refugiados nunca se tornam visíveis como seres humanos, com os mesmos direitos e com sua própria dignidade. Para analisar o ódio e a violência, é necessário observar esses discursos que geram padrões e modelos que, por sua vez, preparam e justificam tais sentimentos. (…)
A primeira coisa que chama a atenção é o reducionismo consciente da realidade. Não há referências, informações ou narrativas sobre migrantes distinguindo-os pelo seu humor, sua musicalidade, suas habilidades técnicas, suas qualidades intelectuais, artísticas ou emocionais. Aliás, não existem notícias sobre infortúnios, fraquezas ou caprichos de nenhum migrante sequer. Na verdade, não há um único indivíduo sequer. Existem apenas representantes. Todo muçulmano ou toda muçulmana (embora a referência seja feita, principalmente, ao gênero masculino) representam todos os outros. A decisão de instrumentalizar um ou outro muçulmano ou migrante para esse fim é arbitrária, desde que sirva de exemplo para demonstrar o suposto mal de todo o grupo.
(…)
O que acontece por meio dessa visão tendenciosa de mundo? (…) O efeito malfadado de fóruns e publicações em que os refugiados sempre aparecem como coletivos e nunca como indivíduos, nos quais os muçulmanos sempre se apresentam apenas como terroristas primitivos ou “bárbaros”, é que isso quase anula a possibilidade de imaginar os imigrantes de outra forma. Isso diminui o espaço destinado à imaginação e, portanto, à empatia. (…) pessoas individuais são subsumidas a determinados coletivos – e esses coletivos são sempre associados aos mesmos atributos. Quem apenas se informa por esses meios, quem só tem acesso a essa visão tendenciosa de mundo e das pessoas que o habitam, acabará assimilando essas mesmas cadeias fixas de associações. Com o passar do tempo, será quase impossível conceber muçulmanos ou imigrantes de outra maneira. Assim, a imaginação é mutilada. O que resta são aquelas formas abreviadas de pensamento que operam unicamente com atribuições e julgamentos pré-fabricados.
É preciso imaginar esse processo de reducionismo da realidade ainda de outra maneira: uma página do Facebook ou um jornal ou um programa de televisão no qual os cristãos só seriam mencionados se – e somente se – cometessem um crime e em que cada delito cometido por uma pessoa cristã fosse ligado de maneira causal à sua afiliação religiosa. Não haveria uma única reportagem sobre casais apaixonados que fossem cristãos, sobre advogados cristãos especialistas em direito tributário, sobre fazendeiros católicos ou mecânicos protestantes, nenhum anúncio sobre canto coral sacro ou festivais de teatro que apresentassem atores e atrizes cristãos, mas apenas e exclusivamente sobre a Ku Klux Klan, sobre os ataques de opositores radicais ao aborto e sobre crimes individuais, desde violência doméstica e abuso de crianças até assaltos a bancos, sequestros ou assassinatos – todos sempre sob o título “Cristianismo”. Como um quadro como esse mudaria a nossa percepção da realidade?
“A capacidade de o ser humano infligir danos aos outros é tão grande”, escreve Elaine Scarry, “exatamente porque nossa capacidade de fazer uma imagem adequada deles é muito pequena.” (…) Quem já não consegue imaginar quão singular é cada muçulmano, cada imigrante, quão singular é cada pessoa trans ou de pele negra, quem não consegue imaginar quão semelhantes eles são em sua busca fundamental por felicidade e dignidade, também não reconhece sua vulnerabilidade como seres humanos, mas vê apenas o que já está pré-fabricado como uma imagem. E essa imagem e essa narrativa fornecem “motivos” para justificar uma agressão aos muçulmanos (ou aos judeus, às feministas, aos intelectuais ou aos ciganos).
(…) tudo isso já havia acontecido antes. Isso não é novo. (…) o ódio a estranhos, a rejeição a tudo que é desviante, a gritaria nas ruas, as pichações difamatórias e aterrorizantes, a invenção do “próprio” como nação, como povo – e a construção dos outros, que supostamente não se encaixam nisso, como “degenerados”, “antissociais”.
Emcke, Carolin. Contra o ódio. Editora Âyiné. 2020. p. 54-58.