“Amora”, Natalia Borges Polesso

Amora foi mais um livro que chegou a mim por acaso e me arrebatou. Já tinha ouvido o título, mas desconhecia a temática que o norteia: relações homossexuais entre mulheres. Todas as personagens parecem de carne e osso, vivas bem por aqui ao nosso redor.

Cada conto traz – numa linguagem poética, mas também sem rodeios – histórias que nos apresentam as dores, os dissabores, mas também os amores de mulheres que se descobrem, se reconhecem, se aceitam ou se estranham lésbicas. O livro contém a magia da beleza natural da vida que se quer ser vivida porque é, simplesmente, para ser vivida, mas sem bandeiras ou panfletagens. Ao contrário. Há verdades em cada relação aberta ou escondida socialmente, em cada percepção de família desde as formadas por jovens até por aquelas que já se preocupam com a morte que se aproxima.

Natalia Borges Polesso nos proporciona, por meio da literatura, experiências de vida nas mais variadas idades e conexões. Da perdida que se converte à avó ou tia cujas famílias mantinham as aparências, as personagens são todas especiais e muito reais. E isso gera no leitor muito mais que encanto. Promove sororidade.

Vale muito a leitura! Pela beleza e pelo primor da escrita e pela bravura na temática apresentada de forma tão natural e elegante.

Transcrevo aqui, para dar água na boca em quem ainda não conhece Amora e gerar vontade de lê-lo todo, o 5o conto do livro ganhador do Prêmio Jabuti, 2016.

Flor, flores, ferro retorcido

Os cabelos crespos lhe escorriam como rios rebeldes pelos ombros. Talvez fosse o fato de estar sempre de chapéu e alpargatas, que lembrasse um pouco o Renato Borghetti, o cara da gaita. Toda vez que penso naquele tempo e lugar, e tento me lembrar do rosto das pessoas e talvez da voz, o que me vem de mais marcante é a imagem dela.

Era 1988, mas pensando agora, parecia tudo muito mais antigo. Na frente da minha casa, ficava o mercado do seu Kuntz, uma peça de chão batido com paredes sem reboco. Era ali que eu passava as tardes com a Celoí, filha do seu Kuntz. A mãe da Celoí tinha morrido de parto o que os tornava, o seu Kuntz e a Celoí, uma dupla muito séria. Eu gostava de ir lá porque era exatamente na frente da minha casa e porque ela tinha o último álbum da Xuxa, aquele com ilariê, abecedário e arco-íris e a gente ficava dançando na frente da vendinha até mais ou menos às seis e trinta, porque sabíamos que às sete horas o transformador da rua explodia. Sim, era sempre às sete horas da noite. O transformador, acho, não aguentava tanta gente assistindo novela, tomando banho, ligando rádio, usando o liquidificador, quem sabe, e começava a fazer barulhos e soltar faíscas, até que bum! Todos ficavam sem luz por algumas horas, como se estivéssemos em uma remota aldeia amazônica. A rua não tinha calçadas feitas, os paralelepípedos eram completamente irregulares, o que arrancava muitas unhas de nós, crianças, que estávamos aprendendo a jogar bola, andar de bicicleta ou simplesmente dançar a música mais tocada do momento. Nada mal para aquele bairro pobre na divisa entre Campo Bom e Novo Hamburgo.

Minha casa ficava entre duas oficinas: a da família Klein, todos loiros de olhos perturbadoramente azuis, pai, mãe e a filhinha pequena, não lembro o nome deles; e, a da figura mais marcante da minha infância, cujo rosto eu vi uma única vez e nunca mais me esqueci. As duas oficinas tinham clientela boa, mas havia uma tensão entre os terrenos, tensão que atravessava as paredes da minha casa por ambos os lados.

Meus pais eram amigos da família Klein e, com frequência, almoçávamos juntos nos finais de semana. Meu irmão e eu brincávamos com a menina deles. Acho que ela tinha a idade do meu irmão, mas está tudo impreciso. O fato que mais se enraizou na minha memória desses almoços foi um dia que ouvi a seguinte frase: como pode uma machorra daquelas? E eu, curiosa que era, rapidamente perguntei o que era uma machorra. Silêncio completo, minha mãe começou a rir de um jeito esquisito, era embaraço. Os homens coçaram a cabeça e se enfiaram rápidos dentro do copo de cerveja que bebiam. A mãe da família Klein estava tão estarrecida que aquela palavra tivesse ido parar na minha boca que começou a rir também. Minha mãe tentou remediar. Cachorra, minha filha, cachorra. Mas eu tinha certeza que tinha ouvido machorra e insisti. Eles mudaram de assunto e me ignoraram. O que eles não estavam esperando era que eu ficasse de orelhas em pé, ligada em tudo o que falavam, e quando voltaram ao assunto, eu preferi ficar quieta ouvindo, fingi interesse em uma boneca, mas minha atenção estava completamente direcionada a eles. Então eu entendi que falavam da vizinha da oficina. Ela era uma machorra.

No outro dia, fiquei plantada no muro para ver se a encontrava e quando ouvi as alpargatas arrastadas se aproximando me estiquei mais ainda por cima da cerca. E caí. Ela veio correndo me socorrer e lembro de uma voz de fada me perguntando se eu estava bem, se tinha me machucado. Minha mãe saiu correndo de casa, me ergueu pelos pulsos e me puxou de volta para o pátio. Ouvi um obrigada por parte da minha mãe, um de nada por parte da vizinha, seguido de um ronco de cuia. Olhei para a minha mãe e perguntei por que ela era machorra. O ronco da cuia parou. Minha mãe enrubesceu e, enquanto me arrastava para dentro de casa, perguntou onde é que eu estava ouvindo uma coisa daquelas. Eu respondi que tinha sido no almoço do dia anterior. As alpargatas estalaram na terra dura em direção ao galpão da mecânica. Minha mãe se escorou na pia com as duas mãos no rosto e suspirou de um jeito muito preocupado. Eu fiquei em pé, limpando a terra dos meus cotovelos e verificando se estava tudo certo comigo, afinal, eu tinha caído por cima de uma cerca; estranhamente, minha mãe não estava preocupada com isso. Minha filha, você não pode dizer essas coisas para as pessoas. Eu perguntei de que coisas e de que pessoas ela estava falando, porque honestamente não me lembrava, e a resposta veio na forma de um tabefe no ombro. Não doeu, mas eu fiquei muito magoada e fui para o meu quarto chorar. Entre um soluço e outro eu ficava tentando entender o que era uma machorra e por que aquilo tinha ofendido a vizinha e preocupado a minha mãe. Cheguei à conclusão de que deveria perguntar mais uma vez.

É uma doença, minha filha. A vizinha é doente. Voltei para o quarto quase satisfeita. Se era doença, por que não tinham me dito logo? Fiquei pensando se era contagiosa, mas concluí que não era, porque a mecânica estava sempre cheia. Voltei para a cozinha. Doença de que, mãe? Minha mãe mais uma vez colocou a mão no rosto e respirou fundo. De ferro retorcido que tem lá naquele galpão. Eu não sabia que se podia pegar doenças de ferro retorcido, mas me dei por satisfeita quando no outro dia a professora explicou sobre o tétano.

Na manhã seguinte, eu fiz o que qualquer pessoa faria por um doente, ou o que eu entendia, na minha cabeça de criança, que qualquer pessoa faria: levei flores. Eu tinha visto na tevê. Peguei as flores que cresciam atrás da minha casa, flor de mato mesmo, umas amarelinhas e um punhado de margaridas. Fui até a mecânica bem cedo sem que ninguém me visse e deixei as flores na porta dela, dentro de um copo d’água. Deixei também um bilhete desejando melhoras e pedindo que, por favor, colocasse as flores num vaso e devolvesse o copo, porque minha mãe poderia dar falta. Ao meio-dia, quando eu voltava da escola, vi que as flores não estavam mais lá e sorri contente, porque ela as tinha recolhido. Entrei em casa feliz e saltitante, mas minha alegria foi quebrada em pedacinhos quando vi a cara da minha mãe, com o copo na mão, perguntando o que eu tinha na cabeça. Eu expliquei para minha mãe que se a vizinha estava mesmo com machorra, seja lá que doença fosse aquela, alguém precisava ir lá e desejar boas melhoras. E foi o que eu fiz. Minha mãe me abraçou bem forte e disse que eu era uma ótima menina e que por isso eu não devia brincar perto da oficina. Eu perguntei de qual e ela disse que era a da vizinha. Então eu perguntei se eu podia brincar perto da oficina do senhor Klein e ela disse que sim. Eu saí para falar com a Celoí, porque não me interessava brincar em oficina nenhuma.

A Celoí colocou o disco da Xuxa e nós ficamos dançando entre os sacos de feijão e a pilha de cera vermelha para piso. Lembrei naquela hora que minha mãe sempre comprava aquela cera e eu não entendi porque nosso chão não era vermelho, mas quando eu fui perguntar para a Celoí sobre a cera, a vizinha entrou. Eu parei de dançar e fiquei petrificada. Meu primeiro pensamento foi de que uma doente não deveria sair de casa, então, perguntei: a senhora está melhor? Ela virou para mim com os cabelos molhados de cima do rosto e, com uma boca bem rosada e uns olhos carinhosos cor de mel, me disse que nunca esteve tão bem. Agradeceu as flores e se ajoelhou pra me dar um beijo. Nessa hora minha mãe me puxou pelos cabelos. Ouvi o pai da Celoí, dizendo não se preocupe, Flor.

Flor, o nome dela era Flor. E ela parecia uma flor mesmo. Na verdade, o nome dela era Florlinda. Eu perguntei para a Celoí no dia seguinte e comentei sobre a história da doença. A Celoí revirou os olhos como quem chama alguém de ignorante, não disse nada, me pegou pela mão e me levou até o quarto dela, pegou um ursinho peposo e duas Barbies. Muito bem, não eram Barbies, eram imitações, mas davam para o gasto e serviram muito bem para o que ela me explicou. Eu tinha oito anos, a Celoí tinha 11 ou 12. Ela pegou uma boneca e o ursinho e começou a explicação. Esse é o homem e essa é a mulher, quando os dois se amam, vão para o quarto e ficam assim – e colocou um em cima do outro – teu pai e tua mãe fazem isso e é por isso que tu existe e teu irmão também. Eu sacudi a cabeça e tentei acompanhar o raciocínio. Depois ela pegou as duas bonecas, fez a mesma coisa e disse que tinha gente que fazia daquele jeito. Isso é machorra, mas é feio falar isso, meu pai disse.

O Seu Kuntz era um homem bem quieto, mas sabia dar atenção às pessoas. Ele e a Flor eram amigos, seguido eu via os dois tomando chimarrão no pátio dela ou na frente da vendinha. Até pensei que eles fossem namorados e perguntei para a Celoí. Ela me deu um sopapo e irritada quis saber se eu não tinha aprendido nada com a explicação das bonecas. O fato era que bonecas eram bonecas, ursos eram ursos e machorras eram machorras. A Celoí tentou de novo: vamos ver, por exemplo, tu gosta mais de boneca ou de carrinho? Depende qual boneca e qual carrinho. A Celoí revirou os olhos daquele jeito. Prefere dançar Xuxa ou brincar de pegar? Eu não sabia responder, porque tudo dependia e eu não estava entendendo aonde ela queria chegar. Tá bem, gosta de rosa ou azul? Gosto de verde. Meu deus, essa é sua última chance, gosta mais de mim ou do Claudinho? O Claudinho era um guri da rua, que a Celoí achava lindo. De ti, é claro, eu respondi. Então tu é machorra. Ela falou sem paciência.

Voltei para casa cabisbaixa naquele dia e, ao atravessar a rua, dei de cara com a Flor, escorada entre o meu portão e o contador de luz. Pequena, por que está com essa carinha triste? Porque a Celoí acha que eu estou doente também, que eu tenho o mesmo que a senhora. Arrastei os tênis no cascalho. Ela se agachou e colocou a mão na minha testa, como se para conferir alguma febre. Bobagem, tu estás ótima. Não há nada de errado contigo. Eu ergui os olhos para ver se ela tinha uma cara honesta. Ela tirou os cabelos da frente do rosto e o transformador explodiu. As faíscas que caíam iluminaram os olhos dela e, naquele momento, ela era a flor mais bonita que eu já tinha visto.

POLESSO, Natalia Borges. Amora. Porto Alegre: Não Editora, 2015. p. 55-63.

Sobre o conto “Flor, flores, ferro retorcido”, li esta análise.

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