O doador de memórias conta uma história passada em uma distopia. A princípio, o que se percebe é que esse estado foi uma opção das pessoas para ficarem livres da fome, da guerra, de todo sofrimento que existia no mundo, fruto da maldade humana. Embora haja muitas questões que poderiam ser discutidas a partir desse livro, vou focar em alguns pontos específicos que me chamaram bastante atenção e me fizeram refletir sobre as decisões tomadas pelos personagens da história e que nos levam a refletir sobre as decisões que tomamos em nossa vida real, tanto no privado quanto no coletivo.
Em primeiro lugar, temos de falar do MEDO. O medo é um fator de controle muito importante. Ele pode nos levar a abrir mão de nossa autonomia e liberdade. Na história, percebemos claramente que em um passado remoto as pessoas optaram por transferir a outros o controle de suas vidas em troca de proteção, de segurança. Nós também aqui, no mundo real, no meu caso Rio de Janeiro, Brasil, andamos com muitos medos, multiplicados pelas mídias. Por exemplo, medo do que os professores podem falar para fazer a cabeça de seus alunos; medo das más influências em relação às liberdades e acesso à informação; medo da violência, de sair de casa e ser assaltado ou morto com um bala perdida. E o medo gera inúmeras reações, com soluções não necessariamente adequadas (direito ao porte de armas, por exemplo)… Então me pergunto, a partir da reflexão do que o livro me mostrou:
Esses medos estão nos levando a quê, na vida social e na vida privada?
Eles estão nos fazendo renunciar a quê, na vida social e na vida privada?
Acho que temos de abrir os olhos e pensar muito sobre isso.
Num segundo plano, como parte do “combo” para se viver em paz, ao menos numa pseudo paz, as personagens do livro abriram mão da sua história pessoal e da História coletiva, delegando a um ser externo – o “Doador de Memórias” – a manutenção de todas as lembranças e conhecimentos. No livro, as pessoas não tinham memória pessoal, laços familiares, afetivos nem conhecimento do passado da comunidade, mas sabiam que, se precisassem de algo, os anciãos poderiam acessar as informações indo consultar o Doador. Pode até parecer cômodo, mas também é muito perigoso…
Fiquei durante a leitura pensando… E se, de repente, o Doador, antes de transmitir o que sabia a um novo Recebedor, morresse ou enlouquecesse? Ou, ainda, e se ele resolvesse que tudo aquilo que guardava era bobagem e começasse a mudar as histórias para que os próximos Recebedores acessassem informações e experiências diferentes das reais? Esse é um dos riscos que sofremos quando negligenciamos o conhecimento pessoal e, consequentemente, coletivo de nossa História! Podemos ser facilmente enrolados por informações mentirosas, por mais absurdas que sejam. Estamos vivendo isso agora! Será que a Terra é plana? O Nazismo não seria de esquerda? E o mentiroso aquecimento global?!
Eu, particularmente, fiz logo uma analogia entre o papel do Doador na narrativa e a nossa Internet hoje. É importante que a gente entenda que o mundo que está em nossas mãos (através do celular) não é sinônimo de conhecimento. A internet contém dados, informações, não contém conhecimento. O conhecimento é gerado a partir do trato, da leitura, que eu e você damos a esses dados e informações. Então, o que está acontecendo hoje é que, quando, por exemplo, um aluno fotografa o quadro escrito pelo professor na sala de aula, quando ele ignora aquele tempo de aula, sem interagir com o professor para trocar ideias, debater, refletir, quando deixa de ler aqueles textos “grandes” e “chatos”, deixa de ler os livros indicados, para ler depois uns resumos ou ouvir apenas videoaulas sem interação real, ele (nós, muitas vezes!) está abrindo mão da construção pessoal do conhecimento e está delegando a um órgão externo ao seu corpo a sua memória.
Isso é um grande erro e uma grande ilusão de facilidades.
A discussão que existe hoje na Academia e que lemos nos jornais é justamente sobre quais os interesses (políticos, econômicos) dos grandes detentores de toda essa memória e tudo aquilo que estamos disponibilizando na Internet. Estamos abrindo mão de nossa Memória, de nossa privacidade, de nossas informações e dados pessoais em troca de quê? O que ganhamos com isso? Pílulas da felicidade?! (Quase as mesmas pílulas de O doador de memórias.) Entretenimento?!…
Alienação!
Em meio a tudo isso, vamos vivendo mudanças que aparecem nesta e em outras distopias, mas também são claras na vida real. Em O doador de memórias, tomamos conhecimento da existência de apenas três livros acessíveis aos cidadãos comuns: 1) o dicionário, para a precisão vocabular; 2) o grosso catálogo da comunidade, que continha descrições do que existia: escritórios, fábricas, construções, comitês; e 3) o Livro de Regras.
Isso está bem claro nesta passagem quando Jonas chega à casa do Doador e se depara com uma imensa biblioteca. Ele se dá conta de que:
“Os livros de sua casa eram os únicos que ele já tinha visto. Nunca soubera que existiam outros.”
(Lowry, 2014, p. 78)
Dentre as diversas estratégias de controle, a precisão vocabular, em O doador de memórias, é um limitador explícito das subjetividades, das diferenças. Eles não queriam diversidade. Promovem a Mesmice, excelente nome para a representação da morte do livre-arbítrio.
Vivemos isso no passado e no presente. Várias distopias mencionam as mudanças vocabulares como parte da organização do poder. Quem leu ou assistiu à série O conto da aia, quem já leu 1984, de George Orwell, ou Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, sabe como os livros são tratados, como a História é queimada e os meios de comunicação e as instituições são desacreditadas, ridicularizadas e modificadas para que prevaleçam apenas a visão e a “verdade” de quem está no controle.
Cortar palavras e expressões de documentos oficiais e de livros didáticos, por exemplo, é uma forma de impor uma linha de pensamento.
O que tiro da leitura da distopia O doador de memórias, então?
A memória pessoal e coletiva são fundamentais! É um direito de cada um de nós. E a leitura é a base de acesso e manutenção dessa memória. Porque quanto mais lemos, mais aumentamos nossa capacidade de análise crítico-reflexiva sobre o mundo em que vivemos; quanto mais profundos nossos níveis de leitura, maior a nossa percepção do que está ao nosso redor. O oposto se dá igualmente: quanto menos lemos, menor a nossa capacidade de análise crítico-reflexiva; quanto mais superficiais nossos níveis de leitura, menor é a nossa percepção do que está ao nosso redor.
Esta passagem é muito expressiva para mim. Jonas, desesperado com as descobertas, questiona o Doador sobre as ações, por exemplo, de seu pai. E o Doador, como dizem os jovens, “lhe dá um choque de realidade”:
“– Escute aqui, Jonas, eles não podem agir de outro modo. Eles não sabem de nada.”
(Lowry, 2014, p. 158)
A dor do conhecimento fica bem explícita quando Jonas entende o real significado da palavra “dispensa”. (SPOILER) Mantidos na ignorância, a comunidade acreditava que a dispensa de idosos era uma honra (faziam até cerimônias especiais para isso) e a dispensa de crianças era um benefício para elas. A ignorância nos leva a fazer e a aceitar coisas que ao conhecimento seriam inadmissíveis:
“– A dispensa é sempre assim? Para as pessoas que desobedecem às regras três vezes? E para os Idosos? Eles matam os Idosos também?
– Sim, matam, é verdade.
– E quanto à Fiona? Ela adora os Idosos! Está sendo treinada para cuidar deles. Ela já sabe disso? O que vai fazer quando descobrir?”
(Lowry, 2014, p. 158)
Eis aí o grande perigo a que estamos sujeitos. O conhecimento coletivo e a nossa Memória só se constroem e se multiplicam no dia a dia com o desenvolvimento e a troca de conhecimentos e de experiências entre os indivíduos e os grupos que se formam. Então, devemos parar e refletir profundamente sobre o que estamos construindo, por que estamos abrindo mão de tantos saberes, habilidades e competências? Fico awui com algumas perguntas que estão martelando em minha cabeça:
- Qual a importância da Memória para a nossa vida?
- Qual a importância do legado das gerações passadas para nossa existência hoje?
- Por que não podemos abrir mão de nossa autonomia e de nossa liberdade de expressão?
- Por que não devemos nos privar do direito ao livre arbítrio?
- Os fins podem justificar os meios?!
Excelente observação. Gosto dos seis textos, enriquecedor.
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Obrigada!
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