Num primeiro momento, se me perguntassem se gostei do livro A vegetariana, da premiada sul-coreana Kan Hang, juro que não saberia responder. Fiquei impactada e incomodada. Aliás, acho que essa é a melhor definição: incomodada. Talvez, então, deva dizer que o romance é bom, pois mexe, faz pensar, faz sair do lugar comum e da mesmice da acomodação.
Tomei conhecimento do livro pelo Clube de Leitura Leia Mulheres. Foi o primeiro que li para ir à minha primeira reunião na Blooks Livraria. E, embora já o tenha lido há vários dias, deixei para escrever sobre ele após o bate-papo. Portanto, vou expor aqui minha leitura encharcada do que ouvi no clube.
Publicadas no início separadamente pelo que soube, há três histórias distintas, com narradores distintos, mas que se complementam e se entrecruzam. A narração feita por personagens diferentes permite que tenhamos acesso a um acontecimento e suas consequências pelo ponto de vista de cada um. O curioso é que o ponto de vista da protagonista Yeonghye – que todo o tempo deseja fugir das inúmeras violências que sofreu e que continua sofrendo em sua vida – não é, em nenhum momento, levado em conta nem explicitado. Apenas na primeira parte surgem pequenos lampejos de seus pensamentos, que logo depois desaparecem por completo.
O primeiro narrador, o marido de Yeonghye, começa sua fala informando-nos como escolheu sua esposa:
Acabei me casando porque ela não tinha nenhum charme especial, e também por não ter notado defeitos muito gritantes. Uma personalidade dessas, sem frescor, brilhantismo ou refinamento, me deixava confortável. Não sentia necessidade de bancar o inteligente para conquistá-la e não precisava correr tentando não chegar atrasado aos nossos encontros.
Ele é tão medíocre, que não quer uma mulher que lhe dê trabalho algum para mudar. Isto é, ele não quer ninguém melhor que ele porque tem vergonha da sua inferioridade:
Meu corpo não desenvolvia massa magra nem mesmo com meus repetidos esforços de me exercitar. Até mesmo meu pênis pequeno, que costumava me deixar um pouco apreensivo, parou de me incomodar quando estava com ela.
Num casamento mais frio do que morno, numa vida bem mais ou menos, Yeonghye decide, por causa de um sonho, deixar de comer carne. Essa é a complicação que vai gerar todo o desenvolvimento da narrativa numa cultura em que a mulher cuida da casa, do marido e da boa e variada alimentação da família, sempre com muita carne, porque isso simboliza tempo de bonança, sem as privações das guerras por que os antepassados passaram.
Yeonghye, no entanto, se liberta da carne como se se libertasse do sofrimento, das amarras de um mundo que a explora e a agride. Parece que ela precisa, nesse processo, se desumanizar para sair do ciclo de maus-tratos que a vida inteira sofreu de todos ao seu redor, do pai irascível ao marido que também a violenta. Aliás, é um verdadeiro e curioso paradoxo: ela sofre desumanização mas é a criadora da desordem. Enquanto humana, gera desordem e sofrimento como uma ação e reação normal de sobrevivência. O desejo de se tornar árvore e viver do sol – sem roupas, sem amarras, literalmente de cabeça para baixo, pois as raízes (cabeça na terra) é que a manteriam alimentada e viva – é o desejo de sobreviver independente dessas intrincadas dependências humanas.
Os outros dois narradores são a irmã e o cunhado. Eles também têm suas mediocridades, culpas e violências. É estranho perceber que a autora criou uma narrativa sem nenhum personagem carismático. Parecem todos alienados, medíocres, numa vidinha individualizada que se apaga no dia a dia.
A irmã tem um mecanismo psicológico de sobrevivência social que é sempre cuidar do outro, da casa, da loja, do sustento, do marido, do filho, por sentimento de culpa até da própria irmã. Percebe, no entanto, que não cuida de si mesma.
O marido dela, por sua vez, sem o peso do sustento da casa, explora a mulher que é extremamente dócil e resignada para viver a sua Arte. Entretanto, para atingir o ideal estético, ele precisa romper com a moral e usar a loucura e incapacidade mental da cunhada para alcançar o ponto máximo de sua criação. Esse personagem é bem louco. Tem uma tara meio pedófila e sem freio.
Sem querer contar a história ou dar muitos spoilers, esse romance nos prende pelos acontecimentos e pelo incômodo gerado a todo instante com as violências que vamos detectando contra a mulher a partir das várias relações sociais. É duro ver que tais violências não vêm somente de homens, mas ela se perpetua e se ratifica também pelas mulheres, que não conseguem dar um basta.
Isso acontece lá do outro lado do mundo e aqui. Estejamos atentas!
Olá!
Não existe Leia Mulheres na minha cidade, então sempre leio os que serão discutidos na cidade aqui do lado, embora quase nunca eu consiga ir aos encontros (a distância é grande). Claro que as discussões no clube de leitura são enriquecedoras, mas a lista de livros em si já é maravilhosa!
Essa é a segunda resenha que leio sobre A Vegetariana e confesso que a sua me deixou mais curiosa pala obra. É lamentável perceber como esses casos que nos incomodam não estão distantes da realidade que encontramos nos lares. :~
Beijo,
Samantha Monteiro
“Degrau de Letras”
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Que bom que gostou, Samantha! Podemos ir trocando ideias sobre as leituras.
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