Acabei de reler O conto da ilha desconhecida, de José Saramago. Li-o pela primeira vez em agosto passado. A beleza do texto é tanta, que, desde então, ele não saiu de minha cabeça.
O livro é tão pequenino quanto grandioso. Talvez, em papel A4 digitado, equivalha a, no máximo, oito páginas. Isto é, em não mais que uns 30 minutos, é possível se deliciar com uma verdadeira obra-prima e viajar pela riqueza linguística de Saramago.
A história é bem simples. Um homem quer se lançar ao mar para descobrir uma ilha desconhecida. Para isso, porém, precisa pedir ao rei um barco. Dirige-se, então, à porta das petições e toca lá a campainha, mas não consegue tão rapidamente ser recebido pelo soberano, pouco interessado nas necessidades do povo. Mesmo assim, ele não desiste de seu intento até conseguir.
Interessante é ver que “a casa do rei tinha muitas mais portas” (p. 5), mas apenas três delas são mencionadas e usadas: o homem aventureiro-sonhador se coloca logo de pé na das petições com o desejo de conseguir o que precisa para realizar seu sonho; “o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios” (p. 5), só recebendo favores, claro, em vez de os dar a quem precisa; e a mulher da limpeza, a última na escala hierárquica, não titubeia e passa, sem pestanejar, na das decisões, “que é raro ser usada, mas quando o é, é” (p. 23). Ela é a personagem mais ousada, corajosa e perseverante. Fiquei aqui pensando se não temos essas três portas também em nossa vida: a dos pedidos, que nos mantém na humildade por depender/precisar do outro; a dos obséquios, os elogios e favores recebidos, que nos infla porque se os recebemos é porque achamos que nos consideram dignos; e a porta das decisões, para mim a mais importante, pois com ela pegamos as rédeas de nossas vidas.
O outro ponto curioso tem a ver com a hierarquia e o deboche sobre a burocracia. Não tomamos conhecimento do nome de nenhuma das personagens. Sabemos apenas seus cargos, por conseguinte suas posições, em importância, no reino. O homem comum, do povo, desejoso de falar com o rei, é atendido pela menor das subalternas, a mulher da limpeza, e cerzideira (também se mostra a exploração!). Ele, no entanto, insiste em falar com o mais alto de todos, o soberano, o qual sem nenhuma boa-vontade para com um súdito, impinge-lhe uma longa travessia burocrática: “e só quando o ressoar contínuo da aldabra de bronze se tornava, mais do que notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhanca (as pessoas começavam a murmurar, Que rei temos nós, que não atende), é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar. Então, o primeiro-secretário chamava o segundo-secretário, este chamava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém quem mandar, entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres” (p. 6).
Críticas ao ter, ao poder, à hierarquia e às burocracias escancaradas – não seria Saramago se não as houvesse -, o escritor português nos envolve numa descoberta poética sobre nós mesmos. O conto nos enreda numa viagem repleta de força, garra, coragem, fé, determinação e otimismo numa busca de conhecimento interior e de sentido para a vida.
“Poderás dizer-me para que queres o barco, Para ir à procura da ilha desconhecida, Já não há ilhas desconhecidas, O mesmo me disse o rei, O que ele sabe de ilhas, aprendeu-o comigo, É estranho que tu, sendo homem do mar, me digas isso, que já não há ilhas desconhecidas, homem da terra sou eu, e não ignoro que todas as ilhas, mesmo as conhecidas, são desconhecidas enquanto não desembarcamos nelas…” (p. 27)
O Homem não vive sem sonhos e desafios; riscos e desejos. E a felicidade (aí está o otimismo do autor) não está no futuro nem muito menos numa ideia de algo além-vida. Está no caminho até o ponto a que se chegar, pois essa é a nossa conquista. E vitória. O conto, então, mexe com a acomodação a que nos sujeitamos, por exemplo, dessa prometida e desejada felicidade como algo a só ser alcançado quando se chegar a um determinado destino. Saramago nos faz pensar sobre o caminho a percorrer, para não perder a vida na expectativa da chegada, que pode não ser a que se alcançará.
“… Mas tu, se bem entendi, vais à procura de uma onde ninguém tenha desembarcado, Sabê-lo-ei quando lá chegar, Se chegares, Sim, às vezes naufraga-se pelo caminho, mas se tal me viesse acontecer, deverias escrever nos anais do porto o ponto a que cheguei foi esse, Queres dizer que chegar, sempre se chega, Não seria quem és se não o soubesses já.” (p. 27-28)
E como beleza pouca é bobagem, pois quando há, o belo transborda em cada passagem, descobrimos “Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, (…)” (p. 41)
O homem aventureiro é uma ilha; a mulher da limpeza, outra. Duas ilhas desconhecidas que têm muito a conhecer-se a si mesmos, um ao outro e ao mundo que se abre a seus pés. O mesmo se dá comigo e com você.
Vale, vale, vale muuuito a leitura e mil releituras.