A carícia essencial que resgata nossa humanidade

Este texto maravilhoso foi escrito em 17 de fevereiro de 2014, por Leonardo Boff em seu blog. Me veio hoje na lembranças do FB. Valeu muito a pena relê-lo. É atemporal.

A carícia constitui uma das expressões supremas da ternura sobre a qual dicorremos no artigo anterior. Por que dizemos carícia essencial? Porque queremos distingui-la da carícia como pura moção psicológica, em função de uma bemquerença fugaz e sem história. A carícia-moção não envolve o todo da pessoa. A carícia é essencial quando se transforma numa atitude, num modo-de-ser que qualifica a pessoa em sua totalidade, na psiqué, no pensamento, na vontade, na interioridade, nas relações.

O órgão da carícia é, fundamentalmente, a mão: a mão que toca, a mão que afaga, a mão que estabelece relação, a mão que acalenta, a mão que traz quietude. Mas a mão é mais que a mão. É a pessoa inteira que através da mão e na mão revela um modo-de-ser carinhoso. A carícia toca o profundo do ser humano, lá onde se situa seu Centro pessoal. Para que a carícia seja verdadeiramente essencial precisamos cultivar o Eu profundo, aquela busca do mais íntimo e verdadeiro em nós e não apenas o ego superficial da consciência sempre cheia de preocupações.

A carícia que emerge do Centro confere repouso, integração e confiança. Daí o sentido do afago. Ao acariciar a criança a mãe lhe comunica a experiência mais orientadora que existe: a confiança fundamental na bondade da vida; a confiança de que, no fundo, apesar das tantas distorções, tudo tem sentido; a confiança de que a paz e não o pesadelo é a realidade mais verdadeira; a confiança na acolhida no grande Útero.

Assim como a ternura, a carícia exige total altruismo, respeito pelo outro e renúncia a qualquer outra intenção que não seja a da experiência de querer bem e de amar. Não é um roçar de peles, mas um investimento de carinho e de amor através da mão e da pele, pele que é o nosso eu concreto.

O afeto não existe sem a carícia, a ternura e o cuidado. Assim como a estrela precisa de uma aura para brilhar, da mesma forma o afeto necessita da carícia para sobreviver. É a carícia da pele, do cabelo, das mãos, do rosto, dos ombros, da intimidade sexual que confere concretude ao afeto e ao amor. É a qualidade da carícia que impede o afeto de ser mentiroso, falso ou dúbio. A carícia essencial é leve como um entreabrir suave da porta. Jamais há carícia na violência de arrombar portas e janelas, quer dizer, na invasão da intimidade da pessoa.

Disse com precisão o psiquiatra colombiano Luis Carlos Restrepo que escreveu um belo livro sobre “O direito à ternura” (Vozes 1998): “A mão, órgão humano por excelência, serve tanto para acariciar como para agarrar. Mão que agarra e mão que acaricia são duas facetas extremas das possibilidades de encontro inter-humano”.

Numa reflexão cultural mais ampla, a mão que agarra corporifica o modo-de-ser dos últimos quatro séculos, da assim chamada modernidade. O eixo articulador do paradigma moderno é a vontade de agarrar tudo para possuir e dominar. Todo o Continente latinoameriano foi agarrado e praticamente dizimado pela invasão militar e religiosa dos ibéricos. E veio a Africa, a China, todo o mundo que se pôde agarrar, até a Lua.

Os modenros agarraram dominando a natureza, explorando seus bens e serviços sem qualquer consideração de respeito de seus limites e sem dar-lhe tempo de repouso para poder se reproduzir. Hoje colhemos os frutos envenenados desta prática sem qualquer cuidado e ausente de todo sentimento de carícia para com o que vive e é vulnerável.

Agarrar é expressão do poder sobre, da manipulação, do enquadramento do outro ou das coisas ao meu modo-de-ser. Se bem repararmos, não ocorreu uma mundialização, respeitando as culturas em sua rica diversidade. O que ocorreu foi a ocidentalização do mundo. E na sua forma mas pedestre: uma hamburguerização do estilo de vida norteamericano imposto a todos os quadrantes do planeta.

A mão que acaricia representa a alternativa necessária: o modo-de-ser-cuidado, pois “a carícia é uma mão revestida de paciência que toca sem ferir e solta para permitir a mobilidade do ser com quem entramos em contacto”(Restrepo).

É urgente nos dias de hoje resgatar nos seres humanos, a dimensão da carícia essencial. Ela está dentro de todos nós, embora encoberta por grossa camada de cinza de materialismo, de consumismo e de futilidades. A carícia essencial nos devolve a nossa humanidade perdida. Em seu sentido melhor reforça também o preceito ético mais universal: tratar humanamente cada ser humano, quer dizer, com compreensão, com acolhida, com cuidado e com a carícia essencial.

Leonardo Boff é autor de O cuidado necessário, Vozes 2012.

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