O artigo abaixo é de Arnaldo Niskier. Foi publicado hoje, 03/11/2017, na Folha de São Paulo.
O que há de mais singular na formação e no desenvolvimento da literatura afro-brasileira, em comparação com processos similares no resto do mundo, talvez seja o fato de os autores, sobretudo de 1930 em diante, terem a todo instante de declarar a palavra “negro” como instância de afirmação de uma identidade denegada pelo imaginário social hegemônico.
Isso ocorreu também nos Estados Unidos, com o New Negro Movement e nos países francófonos com a Négritude, que assumiu a palavra “negro” como enfrentamento ao sentido pejorativo nela alocado.
Tal rebaixamento decorre também do estigma que, a partir do discurso bíblico, envolve o signo “negro” no Ocidente.
Isso parece coincidir com a avaliação de que —ao lado da religião, das artes, em geral, e, sobretudo, da poesia— a literatura e o teatro permitem chegar ao homem negro, às ambições e frustrações mais profundas e ao que há de irremediável e irredutível no empobrecimento humano e cultural de uma sociedade que converte a democracia racial em um falso idealismo.
Nesse sentido, a profundidade de uma consciência negra para uma nação mestiça é fundamental; a expressão artística foi o meio que inúmeros poetas encontraram para combater e libertar seu povo do preconceito e integrá-lo à sociedade.
Não posso deixar de citar o escritor Cruz e Sousa (1861-1898), o “Cisne Negro”, como era conhecido no seu tempo, considerado o maior poeta negro do país.
Um dos precursores do simbolismo no Brasil, Cruz e Sousa vai além deste título, demonstrando em sua poesia uma perfeita fusão de sensações, sentimentos e consciência social a partir de sua própria realidade. O desejo manifestado em seu texto se converteu num instrumento de contestação da segregação e da situação socioeconômica que viveu, triste herança do povo negro.
Sua poesia (em verso e prosa) é a metáfora de um grito atormentado de alguém que busca no sofrimento a rota de fuga de uma verdade artística pura e absoluta.
Um caminho que não se detém aos limites de sua obra, mas se desdobra em cada leitor que é tragado para seu universo.
ARNALDO NISKIER, professor e jornalista, é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e doutor honoris causa da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e da Unama (Universidade da Amazônia)