Acordar, em pleno sábado, lendo esta notícia publicada hoje, 25/11/2017, no jornal O Globo, não poderia ser melhor. A Arte pode transformar vidas. A Arte salva vidas!
Em escola vizinha à Rocinha, poesia combate desesperança
Versos de alunos do Colégio André Maurois viram livro em tom de desabafo
Quero brotar em Pasárgada, lá eu posso acordar/Ir tranquilo para a escola sem medo de um tiro tomar”, escreveu Rafael Barroso, aluno da Escola Estadual André Maurois, na Gávea. E prossegue: “Lá eu posso ser negro em paz/E com bandido ser comparado? Jamais!”. Para ele e seus colegas de colégio, a Pasárgada, paraíso inatingível eternizado na poesia de Manuel Bandeira, é apenas um lugar a salvo de balas perdidas. Ser “amigo do Rei” nem é tão importante. Rafael batizou seu poema de “Liberdade”. A poesia está publicada — com mais 45 criações de outros alunos do colégio — num livro lançado esta semana, durante o festival literário da escola. Enquanto esses jovens de 15 a 18 anos do ensino médio criavam rimas para as suas obras, a Rocinha, onde a maior parte deles mora, vivia uma guerra entre facções que chegou a suspender as aulas da escola por mais de duas semanas. Uma violência que não tem fim. Por isso, os professores não têm dúvida: embora singelo, o livro é, mais do que uma demonstração de criatividade, um ato de resistência.
Há poemas sobre amores, os dilemas de ser jovem, as belezas das praias do Rio. Mas boa parte deles passa pela dor de estar numa rotina violenta. Ao menos 17 textos tratam deste assunto e da falta de perspectivas dentro da sociedade. “Os tiros vão para todo lado/Os moradores não saem mais de casa/E a cidade?/PARA!”, é o apelo em forma de estrofe que o aluno Pedro da Silva faz. “Em meio à violência/Permaneci/O que resta é só saudade/Dos dias de paz que vivi”, desabafa, por sua vez, outra estudante, Ana Beatriz da Silva.
— Este ano, o tema proposto foi o jovem e a cidade — conta Cintia Barreto, professora do colégio, organizadora e curadora da Festa Literária da André Maurois (FLAM) e também do livro de poesias. — Infelizmente, nossos jovens têm sofrido com esses problemas sociais, com a violência urbana. A gente queria escutar essa voz, saber de que forma eles estavam processando essa cidade.
A escola respira cultura. Logo na entrada, por exemplo, alunos montaram um retrato de Martin Luther King Jr. só com peças de dominó. Mas, por um tempo, essa efervescência ficou suspensa. Após esse hiato de duas semanas sem aulas por causa da violência, Cintia notou os jovens mais cabisbaixos. Agora, para ela, a hora é de mostrar que há talentos e potenciais a serem revelados na Rocinha, no Vidigal e em tantas outras favelas onde moram os alunos do colégio:
— Essa festa de hoje (ontem) é uma catarse. A gente sabe que o problema urbano não está resolvido. Mas queremos que eles vivenciem outras experiências, que transformem dor em arte.
Um dos autores dos poemas selecionados para o livro é Jean Alves, de 17 anos. Ele, que mora na Rocinha com a mãe, optou por escrever um texto sobre um tema feliz: o eu-lírico, que aproveita um dia de praia com a namorada. Animou-se a tal ponto que já pensa em cursar Letras:
— Sabia que muita gente já ia falar sobre violência. É algo com o qual sofremos, mas não temos culpa — diz ele, explicando sua escolha. — Quando a escola fechou, senti falta. Participo de todas as atividades extraclasses. Aqui, a gente conhece coisas que não conheceria.
Há alguns meses, uma aluna de 16 anos foi atingida por uma bala perdida em casa. Desde então, não tem ido à escola por causa do tratamento. A diretora Elizabeth Ramos, que mais parece uma faz-tudo dentro do colégio, garantiu à mãe da adolescente que fará de tudo para a jovem não perder o ano letivo. Na linha de frente da Festa Literária, Elizabeth já doou uma coleção de livros para um ponto de leitura dentro do colégio e deu o dinheiro para pagar o Uber que levará a autora (e moradora da Rocinha) Fabiana Escobar, a Bibi Perigosa, ao evento hoje na escola.
— Para a gente, é um alento fechar o ano com essa prova de resistência. A gente acredita que a literatura pode mudar a realidade deles — afirma. — Era para ficarmos totalmente desanimados, mas a gente tem amor pela escola.
O festival de literatura é uma espécie de força-tarefa dos professores, estudantes e ex-alunos, que voltaram à escola para ajudar a organizar o evento. O livro escrito pelos jovens chama-se “Poetas da Maurois”, uma referência ao nome da escola, batizada em homenagem ao escritor francês André Maurois. É dele a frase “O homem de ação é, antes de tudo, um poeta”.
O GLOBO publica, a seguir, alguns dos poemas do livro:
‘A CIDADE PARA’
PEDRO DA SILVA*
Essa cidade é tão quente
Não sei para onde ir
Quando vou ao baile
A cidade me chama
Para dar uma volta.
E, quando saio,
Só vejo polícia
Correndo para todo lado
E esta polícia me para
Só porque sou “do morrão”.
Eles param as crianças
E elas ficam assustadas
Com a violência da cidade que não para.
Os tiros vão para todo lado
Os moradores não saem mais de casa
E a cidade?
PARA!
* Pedro da Silva é aluno da Escola Estadual André Maurois
‘AMIZADE’
IGOR LIMA*
A amizade é necessária
Para qualquer ser humano
Pena existir a ilusão na utilidade
Acabam achando que amizade
Só se cultiva quando é preciso
Depois é jogada fora.
Amizade de verdade
Seria estar do lado
Nos altos e baixos
Na alegria e na tristeza
Para todo sempre.
*Igor Lima é aluno da Escola Estadual André Maurois
‘COMPREENSÃO DO MENINO’
ITALLO SANTOS*
Quando jovem
A cidade era pequena
Pequeno eu também era.
Minha mãe explicou
Que quando eu fosse mais velho
A visão da cidade grande
Iria surgir em minha mente
E eu iria compreender melhor
O que acontece na minha frente.
Pois há coisas boas e ruins
A qual podemos desfrutar melhor
Se tivermos uma compreensão aflorada
Do que está em nossa volta.
*Itallo Santos é aluno da Escola Estadual André Maurois
‘DEVASTADOR’
GUSTAVO WELLINGTON*
O mundo está assim
Estranho
Amargo
Inerte.
As cidades sendo destruídas
O mundo se acabando
Violência em todo lugar
Corre perigo de tudo acabar.
Aqui hoje
Só existe guerra
Todo mundo se acaba
Nessa terra.
*Gustavo Wellington é aluno da Escola Estadual André Maurois
‘EM UMA CIDADE’
LETÍCIA BRAGA*
Andando pela cidade
Vejo muita desigualdade
Alguns jovens se consomem
Enquanto outros passam fome.
Em uma cidade triste
Jovens ruins não existem
A alegria está em viver
Florescendo a cada amanhecer.
Vivendo do jeito que for
Tentando esquecer a dor
A cidade amanhece feliz
Do jeito que eu sempre quis
*Letícia Braga é aluna da Escola Estadual André Maurois
‘A LIBERDADE’
RAFAEL MONTEIRO BARROSO*
Às vezes, imagino como seria se eu fosse livre
Aquele menor alimentado a fé que sorrindo vide
Nos meus versos componho os sonhos, mas a realidade é triste
E vivo num mundo onde a felicidade infelizmente não existe
E vou meter meu pé, irei onde Deus quiser,
sem pensar qual é,
e pode vir quem quiser
Quero brotar em Pasárgada, lá eu posso acordar
Ir tranquilo para a escola sem medo de um tiro tomar
Lá eu posso ser negro em paz
E com bandido ser comparado? Jamais!
Lá não existe crianças de rua, lá existe a oportunidade
Aquela amiga injusta, que para os de gravata é infelicidade
Em Pasárgada arregaria,
tem comida todo dia,
lá existe a alegria, o amor e a harmonia
Aqui eu não encontro a paz, aqui eu encontro a derrota
Fantasiada de dor e no fundo uma cova
Eu olho para a realidade e me pergunto “como estamos?”
Várias coisas tiram o brilho do que conquistamos
A angústia pior que a de Graciliano Ramos,
olhando a polícia matar criança de dez anos
Não quero ficar aqui, vou meter o pé para Pasárgada
Lá a munição são os argumentos e o livro, a arma
Lá tem muito dinheiro de segunda à sexta feira
Honestamente conquistado e sem nenhuma bobeira
Pasárgada prega a paz,
Pasárgada é demais,
se tu não conhece, chega mais
tudo de bom a gente faz
Lá eu escolho minha religião, sem medo de opressão,
sem medo de levar um tiro de canhão
Lá eu posso entrar num shopping sem medo de ser seguido
era realmente em Pasárgada que eu queria ter nascido
A fé move montanhas,
a boca de aratanha,
a liberdade lá se ganha,
pique caju e castanha
Lá eu grito com orgulho,
negro que brilha no escuro,
racista lá não entra que eu perturbo
Não quero estar aqui,
a realidade faz mal para mim,
lá em Pasárgada não é assim, lá tem flores brancas de marfim
Como eu poderei sonhar,
como poderei imaginar,
sem em Pasárgada estar,
é uma prisão perpendicular
Me sinto detento de uma realidade,
que foi construída pela maldade,
sem direito à verdade,
um padrão da sociedade
Quero ir para Pasárgada
lá eu não viro estatística,
por parecer bandido independente do que eu vista
E quando a maligna realidade passar no meu pensamento,
vou embora para Pasárgada
lá eu tenho meu argumento
Lá eu tenho a minha voz,
lá eu tenho minha serenidade,
eu vou indo para Pasárgada abraçar minha realidade
* Rafael Monteiro Barroso é aluno da Escola Estadual André Maurois
“O JOVEM E A CIDADE”
ANA BEATRIZ DA SILVA MOREIRA *
Nasci no meio da multidão
Ó, Rio de Janeiro
O sol a brilhar no meio da imensidão
Provei da alegria, provei do amor
Provei da solidão
O tempo passou
E nem percebi
Perdi amigos e nem por isso parti
Em meio a violência
Permaneci
O que resta é só saudade
Dos dias de paz que vivi
Por mais que eu tente escapar
A violência por todo lado
Irá estar
Vou tentando fazer o que sonhei
Onde há violência e racismo
Contra negros e gays
A destruição da cidade
Não é o desmatamento, nem a poluição
Parei para pensar e fiquei raciocinando
O que destrói na verdade
É o ser humano.
*Ana Beatriz da Silva Moreira é aluna da Escola Estadual André Maurois