O artigo abaixo é da colunista Flavia Oliveira e foi publicado no jornal O Globo de ontem, 23/11/2017.
Noves fora os argumentos socioeconômicos, luta dos negros é justa porque igualdade é direito constitucional não assegurado.
Dona Santina era uma vizinha de Irajá deficiente visual. Ela perdeu a visão por glaucoma, já adulta. Morava no Bloco A do conjunto habitacional onde cresci, em Irajá. Menina, eu ia à casa dela para atender o telefone, cantar e filar o jantar — adorava o arroz soltinho, o feijão preto bem temperado e a carne moída refogadíssima que alguém cozinhava e levava ainda quente para ela. Quando eu passei a andar de ônibus sozinha, levava Dona Santina para tomar chá na casa de uma velha amiga, em Olaria. Minha mãe me obrigava. Dona Santina era muito amiga da família — era vizinha de porta da Kika, minha irmã da vida toda, mãe do Paulinho, o camisa 7 do Vasco. Meu pai foi subsíndico e, certa vez, tratou de um assunto comunitário com Dona Santina.
“Vou lhe explicar uma coisa. Vamos ver se a senhora concorda”, ele disse.
“Seu Mário, se não ‘com corda’, vai sem corda mesmo”, ela revidou.
Eu viajei trinta e poucos anos no tempo e me lembrei da brincadeira de Dona Santina, enquanto acompanhava o acalorado debate racial nas redes sociais neste novembro da Consciência Negra. Estamos no Baile da Ilha Fiscal do racialismo que, desde a origem deste país, privilegiou pessoas de pele branca, em particular os homens. Escolho a palavra (racialismo) como licença poética para, usando expressão dos novos tempos, ressignificar o conceito atribuído aos negros nos dias de hoje.
Quem racializou o Brasil foram, na origem, os colonizadores e, depois deles, os donos do poder, agindo em causa própria para manter privilégios e subordinar os fenotipicamente diferentes. Está aí o Banco Mundial e seu recente relatório sobre desigualdades brasileiras a confirmar. Ou não são predominantemente os negros e as negras os apartados do banquete de funções e altos rendimentos no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, na previdência, no mundo corporativo, na academia, nas produções cultural e midiática?
No estudo “O desafio da inclusão”, o Instituto Locomotivas estimou em 112 milhões a população preta e parda brasileira. Formasse um país, seria o 11º do mundo em número de habitantes. Somos muitos. Uma em dez (9%) mulheres e 6% dos homens com 25 anos ou mais de idade concluíram o curso superior. A escolarização é crescente. Somos maioria (55%) no eleitorado e há interesse robusto na disputa pelo poder político, vide a recém-formada Frente Favela Brasil.
O potencial de consumo represado pela desigualdade salarial com os brancos passa de R$ 808 bilhões; um em três negros pretende empreender. Nos próximos 12 meses, 28 milhões planejam comprar móveis para casa; 12 milhões, TV nova; 11 milhões, smartphone; dez milhões, geladeira. Nove entre dez consumidores negros estão prontos a boicotar marcas que não respeitem a diversidade; oito em dez dariam preferência a produtos e serviços de empresas comprometidas com a construção da igualdade racial.
A luta do povo preto por direitos vem de longe. E não vai parar. Noves fora os argumentos socioeconômicos consistentes, é ativismo justo, porque igualdade é direito constitucional não assegurado. Ao longo do tempo, seguidas gerações legaram a seus descendentes resistência, conhecimento, autoestima, argumento. Chegamos ao século XXI numerosos e escolarizados, com poder de consumo, liberdade de escolha, título de eleitor. Estamos em rede. Ninguém aprisionado em convicções gestadas no século XIX e enraizadas nos anos 1990 vai deter o movimento. Como profetizou Dona Santina: “Se não concorda, vai sem corda”. Mas vai. É questão de tempo. Não muito.