Poeme-se, pois a arte salva a vida!

Meu rosário

Conceição Evaristo

Meu rosário é feito de contas negras e mágicas.
Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falo padres-nossos, ave-marias.
Do meu rosário eu ouço os longínquos batuques do meu povo e encontro na memória mal
adormecida as rezas dos meses de maio de minha infância.
As coroações da Senhora, em que as
meninas negras, apesar do desejo de coroar a Rainha,
tinham de se contentar em ficar ao pé do
altar lançando flores.
As contas do meu rosário fizeram calos nas minhas mãos,
pois são contas do trabalho na terra,
nas fábricas, nas casas, nas escolas, nas ruas, no mundo.
As contas do meu rosário são contas vivas.
(Alguém disse um dia que a vida é uma oração, eu diria,
porém, que há vidas-blasfemas.)
Nas contas de meu rosário eu teço intumescidos sonhos de
esperanças.
Nas contas de meu rosário eu vejo rostos escondidos por
visíveis e invisíveis grades
e embalo a dor da luta perdida nas contas do meu rosário.
Nas contas do meu rosário eu canto, eu grito, eu calo.
Do meu rosário eu sinto o borbulhar da fome no
estômago, no coração e nas cabeças vazias.
Quando debulho as contas do meu rosário, eu falo de mim
mesma um outro nome.
E sonho nas contas de meu rosário lugares, pessoas, vidas
que pouco a pouco descubro reais.
Vou e volto por entre as contas de meu rosário, que são
pedras marcando-me o corpo-caminho.
E neste andar de contas-pedras, o meu rosário se
transmuda em tinta, me guia o dedo, me
insinua a poesia.
E depois de macerar conta por conto do meu rosário, me
acho aqui eu mesma e descubro que
ainda me chamo Maria.

Bern, Zilá (org.). Antologia de poesia afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011, p. 159-160.

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