O artigo que segue em itálico, após meus comentários, é de Jairo Marques, publicado hoje, 06/11/17, na Folha de São Paulo. Trata de alguns pontos pertinentes sobre o totalmente inédito e inusitado tema da redação do ENEM 2017.
Vi ao longo do dia de hoje, no trabalho e nas redes sociais, que muitos professores não gostaram da proposta de redação da prova de ontem do ENEM. A crítica se dá, em sua maioria, pela especificidade do tema e do pouco conhecimento de mundo dos candidatos sobre a questão. De forma bem particular, achei a proposta interessante, embora concorde que também foi cruel. Além disso, tendo a pensar que a escolha do tema não está ligado apenas ao fato de este ser o primeiro ano de prova elaborada também em libras. Creio que houve um bom jogo de cintura e uma imensa perspicácia, sobretudo em relação à nossa situação política atual, para agradar a gregos e a troianos ou, pelo menos, não desagradar a nenhum deles.
Faço-me clara:
Primeiramente, o tema é interessante porque toca em uma realidade que precisa ser (re)conhecida por todos nós. É verdade que a discussão sobre inclusão tem ocorrido em congressos educacionais e em várias escolas já há alguns anos. Infelizmente, porém, o processo ainda vive, na prática, muito aquém do que deveria na maior parte das instituições de ensino e, praticamente, fora da formação docente. Em se tratando especificamente de surdos, então, nem se fala. Eu mesma, como professora atuante há 23 anos, com Mestrado e Doutorado em Educação, não tenho formação alguma – a não ser boa vontade e muito amor – para receber um deficiente auditivo (posso usar esse termo?) em minhas aulas.
Por outro lado, justamente por se tratar de uma minoria tão específica, a proposta em si me parece cruel. O desconhecimento de questão tão singular pode levar bons candidatos a não atingirem seus objetivos depois de um longo ano de preparo. Alguns, porém, poderão dizer: o bom candidato é aquele que sabe argumentar sobre qualquer coisa, em qualquer situação. Mas eu não posso concordar com isso! É até possível que uma pessoa bem preparada tenha uma capacidade argumentativa na forma, sim. Entretanto, sem conteúdo, sem um conhecimento mais específico da causa, sem saber, de fato, sobre as dores e temores por que passam esses outros tão bem delimitados (porque nunca leu ou estudou sobre eles e, na maioria dos casos, não deve ter convivido com tal realidade), a argumentação não evolui, fica apenas numa superficialidade, com o risco de tangenciar o texto inteiro. Esse, para mim é um gravíssimo problema! Talvez tenhamos uma das mais baixas pontuações nas Competências 2, 3 e 5, ou terá de ser feito um ajuste da grade de correção para que haja um abrandamento nas exigências de conteúdo (C2), coerência (C3) e proposta de intervenção (C5).
No que diz respeito à perspicácia e ao jogo de cintura, diante de debates tão polarizados e de discussões tão apaixonadas quanto as que vivemos no momento – em que tudo é levado a ferro e fogo -, a banca elaboradora conseguiu, até onde minha leitura do tema alcançou, não só contentar os dois lados opostos, como também, de forma mais audaciosa, uni-los em uma visão irrefutável de urgência da inclusão. Em outras palavras, de um lado manteve-se o objetivo de levar o povo brasileiro a enxergar a existência de questões cruciais pertencentes à vida das minorias, isto é, da mesma forma que se construíram as temáticas sobre o feminicídio, o racismo e a intolerância religiosa, a questão sobre a formação educacional dos surdos toca em outro calo que temos. Em contrapartida, chamou-se a atenção para uma minoria que não aflora a animosidade, os debates inflamados, as discussões que se perdem em inimizades e xingamentos.
Foi um tiro de festim, que trouxe animação para um lado e alívio para o outro.
Só agora vai o artigo da Folha! O que está em negrito é grifo meu.
“Entender a realidade dos surdos ajuda tanto no ENEM quanto na vida”
Para quem labuta por mais inclusão no país, principalmente a inclusão na escola, o tema da redação do Enem foi motivo para festa com banquete, uma vez que coloca os desafios da deficiência, com ênfase na sensorial, no centro das atenções de milhares de jovens postulantes a uma vaga nas principais universidades brasileiras.
Isso sem falar que arrasta o assunto por pelo menos um ano para holofotes de cursinhos, reuniões familiares e discussões entre amigos.
Por outro lado, a empreitada de escrever sobre um assunto cheio de nuances e tão pouco presente nos calorosos embates da atualidade pode ter exposto candidatos a riscos de cometerem uma série de impropriedades, como a de achar que todo surdo precisa aprender libras, que escolas “só para eles” seriam solução, que a língua de sinais é uma reles transformação da língua portuguesa em sinais, entre outros.
O universo da deficiência é plural. Surdos, assim como qualquer “serumano”, têm suas peculiaridades, capacidades, inclinações. Há o que precisa de legendas (domina a língua portuguesa, faz leitura labial e é chamado oralizado), há o que para compreender uma mensagem precisa de janela de tradução para a língua de sinais – e, mais que tudo isso, não há apenas uma língua de sinais.
A solução que pode ter salvado o estudante de um vexame é o amparo nos textos de apoio, a extração e ampliação de suas ideias. A nota dez, porém, deve ser reservada ao postulante que conseguir desenhar a necessidade de uma escola para todos, que vislumbre o amparo tecnológico como mecanismo de apoio em sala de aula, que defenda a ampliação maciça do ensino de libras como instrumento de acolhimento sociocultural legítimo de pessoas com deficiência auditiva.
A questão aqui ultrapassa o debate dos direitos humanos e imagino ser um tanto arriscado ao candidato que defendeu que esse público precisa “se virar” para ser gente. Surdos são amplamente amparados pela Lei Brasileira de Inclusão em suas demandas diversas, com ênfase à educação digna.
O papel dos corretores da redação, neste ano, poderá ser tão tenso quanto aos dos concorrentes, pois a eles vai caber não só dominar conceitos da diversidade surda, como saber até onde cobrar de jovens estudantes o entendimento de realidades tão apartadas do convívio social pleno. Ganhará zero quem usar o termo surdo-mudo, uma vez que ele é incorreto?
Se algum professor “acertou” o tema da redação deste ano com precisão, uma vez que até 2016 o próprio Inep, organizador das provas, desconhecia a necessidade de provas com o devido amparo para surdos, ele deve ser ovacionado.
Mas ante o possível desespero de “não saber nada sobre o assunto” e ter dançado na prova, vale pensar que quem exercita a prática de tentar compreender a realidade do outro, tentando entendê-lo e auxiliá-lo, poderá se dar bem não só no Enem, mas em todos os exames que pretendam abrir portas de oportunidades durante toda a vida.