Sou professora há 21 anos. Já trabalhei em diversas instituições de ensino, da Educação Básica à pós-graduação na cidade do Rio de Janeiro. Estudei muito, investi noites, fins de semanas e férias durante vários anos para poder chegar a um nível de formação que me permitisse ter um mínimo de dignidade em minha profissão.
Apaixonada pelo que faço e consciente do meu dever profissional e cidadão, escrevo hoje sobre o Dia do Professor, o meu dia, com uma tristeza na alma. Ainda criança, já tinha conhecimento do desprestígio de minha profissão em nossa sociedade. Quando resolvi que era isso que queria para mim, sabia que não seria fácil e que provavelmente não alcançaria boa remuneração ou status social. Embora tenha lutado, como já disse, para conquistar minimamente uma boa posição e salário digno, sei que essa não é a realidade da maioria de meus colegas pelo Brasil afora. Isso para mim é devastador e, parece-me, só tende a piorar, porque, além do desprestígio que já vem desde o passado ligado aos baixos salários, estamos vivendo hoje uma DIFAMAÇÃO DO PROFESSOR, enquanto profissional, em dois sentidos:
1) qualquer pessoa, com ou sem uma formação específica, pode-se dizer professor;
2) a visão que se tem hoje do profissional professor – da Educação Básica ou do Ensino Superior, principalmente de instituições públicas – é a de que ele está ali para defender ideologias de esquerda e “perverter seus alunos com ideias impróprias”.
O primeiro ponto contém, a princípio, um verdadeiro paradoxo já que é uma profissão pouco valorizada. Entretanto, é justamente esse paradoxo que gera tamanha abertura. Na cabeça de muitos, é fácil ser professor, qualquer um pode atuar como professor, mesmo quem mal e porcamente terminou o Ensino Médio. Isso não se repete em profissões respeitadas e de prestígio social. Não se vê por aí gente sem formação dizendo-se médico, engenheiro, dentista… E, quando isso acontece e se descobre o dito “charlatão”, ele é preso e sofre as consequências da falsidade ideológica. Mas… e os falsos professores?! Continuam por aí, dando suas aulinhas…
Além dessa questão, vejo, sobre o outro ponto, que as pessoas não estão conseguindo enxergar que seus atos, suas opiniões – baseadas em emoção, fé e ignorância (no sentido de ignorar, desconhecer, de fato, a área sobre a qual estão falando) – vêm desconstruindo uma instituição que existe justamente para que possamos ampliar nossa visão de mundo, alargar nossa capacidade de raciocinar, de refletir, de observar, de ponderar… Parece que as pessoas não entendem que, sem uma escola plural, sem uma escola com professores de origens, formações e visões distintas, não se constrói o espírito cidadão em sua essência.
As escolas particulares de elite já mantêm práticas próprias de acordo com seus interesses e objetivos. Elas formam cidadãos pensantes que serão novos formadores de opinião, mas, por sua realidade social homogênea, não ampliam adequadamente seu olhar com relação às demandas dos que estão fora de seu campo de visão. Talvez, por isso, tantos defendam, por exemplo, a meritocracia (tão natural para uma classe média e até média alta) sem enxergar as diferenças gritantes de oportunidades (e a falta delas), como se fosse algo apenas de luta pessoal. Eles não vivenciam essa diferença.
Em contrapartida, as escolas públicas, sempre carentes de tantas coisas, não podem ser, além de carentes, negligentes com a formação de seus alunos (a grande maioria da população brasileira!) por causa de políticas com interesses limitantes e censuras idiotizantes.
Uma formação plural é imprescindível!!!
São esses alunos os que mais necessitam ter acesso a, primeiramente, informação de qualidade, em seguida, precisam ser expostos a visões variadas de mundo para conseguirem ter uma mínima capacidade (contra)argumentativa. Aprender a defender seus direitos com argumentos plausíveis, isto é, sair do senso comum é uma construção diária, numa longa jornada. E, para isso, o ser humano precisa ser exposto, desde cedo, a opiniões contrárias às suas, a argumentações ricas e a debates. Se não há questionamento e dúvida, não há insight nem aprendizagem. E é a escola o melhor lugar para lhes proporcionar essa riqueza diante da tamanha carência em que já vivem.
A escola tem de conter a diferença!
Ela tem de promover o contato com o diferente!
Na verdade, de forma bem simplista, cada instituição (família, igreja, escola) tem o seu papel social bastante definido. Na família, por exemplo, a criança deve aprender os valores e princípios que permeiam aquele pequeno núcleo, com base nos ensinamentos e exemplos dos seus responsáveis. É ali que se constrói a sua base moral. A igreja, se fizer parte da formação daquela família, deve corroborar os princípios e valores morais que a criança aprende em casa e deve também ajudá-la a ampliar suas relações, mas ainda a mantém nas conexões por afinidades, por semelhanças de visão. É a escola, a terceira instituição portanto, que vai permitir à criança ter, desde cedo, a oportunidade de conhecer o outro – o seu semelhante – na diferença. Isso é fundamental para entender-se como um ser parte de um grupo muito maior e bem menos coeso do que as duas primeiras instituições lhe oferecem.
É por esse motivo que a) desejar uma isenção das discussões que estão ocorrendo na sociedade, b) querer que professores sejam artificiais em sua conduta numa construção de escola sem partido (que nada mais é do que uma escola de partido único), c) defender que não se fale disso ou daquilo em um ambiente próprio para se ouvir opiniões distintas e aprender a dialogar, d) rotular os professores com uma etiqueta única como se todos pensassem de uma mesma forma com o intuito de adestrar os alunos… só me fazem crer o quão cegos estão os que ignoram o real valor da pluralidade intrínseca desses espaços. Em todas, repito, EM TODAS as instituições em que estudei e/ou já trabalhei (universidades particulares e públicas; escolas de educação básica confessionais e não-confessionais; privadas, estaduais e federais) convivi (e convivo) com professores, das mais diversas disciplinas, com pensamentos e formações que variam, por exemplo, da extrema-direita à extrema-esquerda, com posicionamentos a favor e contra as questões mais polêmicas de nossa sociedade, adeptos ou não das discussões X, Y ou Z; católicos, evangélicos, espíritas, umbandistas, candomblecistas, agnósticos, ateus… E foi exatamente a convivência com essas distintas visões e realidades que me permitiu crescer (e a cada dia aprendo mais) como ser humano e como profissional. E digo mais, como mãe de uma filha e um filho, sempre foi o que desejei proporcionar a ambos. Nunca admiti ter “robôs” repetidores de mantras sem uma reflexão extensa. Mas é necessário entender que só existe reflexão na diferença. O contrário não passa de repetição.
A sociedade precisa acordar!
O que se está fazendo hoje com o professor – e consequentemente com a escola – também é a defesa de uma ideologia única e limitante. Se desejamos crescer, ser independentes, conquistar nosso espaço no mundo precisamos abrir a mente, exercitar o cérebro, desenvolver a inteligência. O oposto disso é bem simples e muito cruel. Nem preciso nomear.
O que você quer para a sua vida e para a vida dos seus filhos?
Se não tivermos contato com a diferença, se não convivermos com o que nos perturba, se não enxergarmos o outro como ser com direitos e deveres iguais aos que temos, como vamos viver a verdadeira democracia?
Sejamos plural!
De presente pelo meu dia, pelo Dia do Professor, dedico a todos os meus colegas, estes dois poemas:
A verdade dividida
Carlos Drummond de Andrade
A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia
Tecendo a Manhã
João Cabral de Melo Neto
Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Que o DIA DO PROFESSOR seja festejado não com palavras belas que se repetem por aí, mas com o sentimento e a experiência de vida de que é na ESCOLA que a ARTE DE PENSAR, de REFLETIR, de ARGUMENTAR, de DIALOGAR, de SER… HUMANO pode ser refinada, burilada, aprimorada, apurada.