Na ocasião, a filósofa liberal Hanna Arendt escreveu um polêmico artigo a respeito. Mesmo dizendo-se solidária da causa negra, ela criticava a ação governamental, que à sua vista deveria se reduzir a mudar o ordenamento legal e jurídico que suportava a segregação (como as leis até então vigentes em alguns Estados americanos que impediam o casamento inter-racial) e não intervir diretamente nos costumes sociais nos quais a segregação seja alicerçava.
Utilizando uma distinção entre espaço público de cidadania no interior do corpo político e relações sociais de cunho individual, ou seja, marcados por decisões individuais sobre com quem quero me relacionar, como quero ter minha vida em grupo, Arendt diz que a discriminação é legítima, quando limitada à esfera social, mas destrutiva quando entra na esfera política onde todos devem ser iguais.
Isso a leva a afirmar, por exemplo, que nada deveria obrigar associações recreativas ou espaços privados de recreação que só aceitam brancos, judeus ou homens a obrigar seus membros a estarem em relação com quem não queiram. Pois nada poderia legislar na esfera de minhas escolhas pessoais. Como não se trata de serviços públicos, mas de espaços privados, a discriminação é legítima.
O argumento de Arendt encontra seu caso mais complexo na obrigação das escolas de se tornarem racialmente mistas. Ao mesmo tempo que o Estado teria o direito de garantir conteúdos que visem a formação de seus cidadãos e profissionais, ele não poderia violar o direito social à associação livre e o direito privado dos pais sobre seus filhos.
Se tais associações e pais querem educar seus filhos em um ambiente etnicamente homogêneo, o Estado faria por bem não obrigar legalmente uma mudança. Ainda mais levando em conta que a escola de Elisabeth Eckford era estadual e o Estado de Arkansas estava disposto a garantir tal prática. Daí a conclusão de Arendt, para quem a ação do governo federal teria sido “controversa” e, no limite, indesejável.
Lembrar dos argumentos de Arendt atualmente é interessante para insistir no tipo de distorção que o conceito de liberdade pode adquirir nas mãos de um liberal.
Tal distorção parece estar na base de várias controvérsias recentes a respeito do exercício social da liberdade. Ela nos leva a confundir o exercício da liberdade com o “direito” à afirmação social e realização de um comportamento patológico, a saber, o preconceito.
Dizer que a discriminação é legítima na esfera social, compreender o exercício do preconceito como um “direito”, e não como uma patologia social a ser combatida, é o resultado da tese equivocada de que a liberdade baseia-se na possibilidade de afirmação individual de interesses e escolhas. Baseado nisso, poderia dizer que, se escolhi ter uma vida sem negros por perto, quem poderia me obrigar ao contrário?
No entanto, a liberdade não é um atributo individual, ela é uma realização social própria a sociedades marcadas pela igualdade e pela indiferença social às diferenças antropológicas. Não há indivíduos livres em uma sociedade não-livre.
Nesse sentido, é sim necessário intervir, em todos os níveis, sobre práticas sociais que minam a adesão a princípios igualitários, sob pena de ver os preconceitos recrudescerem e contagiarem campos cada vez mais alargados da vida social. Em uma sociedade que luta pela liberdade, não pode haver algo como o “direito” de ser preconceituoso na esfera privada ou no campo imediato das relações sociais. Pois o que destrói a liberdade não pode ser um direito exercido em nome da liberdade.
Encontrei no Google as fotos a que Vladimir Safatle faz referência em seu artigo, colocando o nome Elisabeth Eckford.