Dove pisou feio na bola

Quando criamos um texto e o tornamos público, ele deixa de ser simplesmente de nossa autoria e se completa em sentido com a leitura daqueles que dialogam com o que está ali. Esses leitores são verdadeiros coautores na construção semântica do texto lido. Sabendo disso e conhecendo as relações intrincadas do mundo em que a gente vive, parece-me inadmissível uma empresa multinacional, qualquer que seja ela, promover seus produtos por meio da publicidade sem enxergar a diversidade de seus potenciais clientes, seja diversidade étnica, cultural, social, econômica etc.

A Dove, mesmo pedindo desculpas pela produção acima que foi ao ar na segunda-feira, dia 09, pisou feio na bola. Muito feio. Mas as perguntas que me faço, sem querer justificar absurdo algum, são:

  1. Quem trabalha na equipe de produção de publicidade dessa mega empresa?
  2. Há mulheres e homens, brancos, pardos, negros, na linha de comando (número equiparado)?
  3. Como empresa multinacional que atende público variado de países e culturas distintas, há variedade étnica e cultural na hora de debater os diversos sentidos de um texto (a propaganda é um texto!)?

Levanto essas questões porque sei o quanto é difícil se colocar no lugar do outro e pensar fora da caixinha. E mesmo que o assunto (racismo) nos pareça, pelo menos para pessoas que se consideram lúcidas, um tanto quanto óbvio em pleno século XXI, ainda há muitas diferenças no modo de ver os direitos do outro.

A única explicação que vejo para ninguém ter se dado conta da possível leitura de limpeza da pele negra transformando-a em branca antes de a propaganda ir ao ar é não ter representante negro algum nessas equipes. E isso é pano para manga para outro assunto: oportunidades distintas (ou a falta delas) reproduz a manutenção do poder nas mãos dos mesmos de sempre. É preciso rever essas questões de forma muito mais ampla…

Entenda o que houve:

Retirei as informações abaixo da Folha de São Paulo, de 09 de outubro de 2017.

A propaganda, um GIF de três segundos para um sabão líquido da marca, uma mulher negra tira uma camiseta para revelar uma mulher branca, que remove sua camiseta e revela uma terceira mulher.

A ação, originalmente transmitida na página da Dove Estados Unidos no Facebook, foi amplamente denunciada por usuários da rede em todo o mundo.

“Ser negro significa ser sujo e indesejável?”, postou uma usuária do Twitter, pedindo boicote aos produtos Dove e Unilever.

A hastag #BoycottDove era amplamente replicada na rede social na manhã desta segunda-feira (9).

Marissa Solan, porta-voz da Dove, disse neste domingo (8) que o GIF “pretendia transmitir que o Dove Body Wash é para todas as mulheres e é uma celebração da diversidade, mas entendemos errado e, como resultado, ofendemos muitas pessoas.”

Ela acrescentou que Dove removeu a postagem da rede e está “reavaliando nossos processos internos para criar e revisar conteúdo.”

Em 2013, outra marca de cosméticos da Unilever teve que se desculpar após a polêmica criada por um concurso na Tailândia em torno de um produto para clareamento da pele.

O anúncio da Dove não é um caso isolado de uma empresa —a própria marca já foi acusada de racismo anteriormente.

Relembre outros casos:

NIVEA, abr.2017

Em abril, a Nivea, marca alemã de produtos para cuidados com a pele, lançou um anúncio de desodorante que dizia: “Branco é pureza”. Os supremacistas brancos na internet não deixaram passar, e um usuário do 4chan (site em que usuários publicam anonimamente) escreveu: “A Nivea escolheu o nosso lado.”

Seis anos antes, depois de se desculpar por um anúncio que mostrava um homem negro que se preparava para jogar fora o seu antigo rosto com traços afro atrás das palavras “Re-civilize-se”, a Nivea prometeu rever os “processos atuais de desenvolvimento e aprovação” de publicidade para “evitar qualquer tipo de interpretação enganosa futura.”

QIAOBI, mai.2016

Em um comercial de 2016 para o sabão em pó da empresa chinesa Qiaobi, uma mulher asiática empurrava uma cápsula de detergente na boca de um homem negro e colocava-o em uma máquina de lavar roupa, da qual ele emerge como um asiático de pele clara.

Uma porta-voz da Qiaobi, Xu Chunyan, não se demonstrou arrependida. “Nós fizemos isso por um efeito sensacional”, disse ela à época. “Se nós apenas mostrarmos a roupa como todos os outros anúncios, o nosso não vai se destacar.”

POPCHIPS, mai.2012

A Popchips, marca de salgadinhos, disparou em 2012 um anúncio em que o ator Ashton Kutcher interpretava vários personagens —incluindo um produtor de Bollywood chamado Raj. Para o papel, o rosto de Kutcher foi pintado de marrom, e o ator imitava um sotaque indiano.

Inicialmente, a Popchips pediu que os espectadores assistissem ao anúncio com o “espírito que se pretendia” de humor. Mais tarde, seu executivo-chefe, Keith Belling, disse em um comunicado: “Nossa equipe trabalhou duro para criar uma paródia alegre com uma variedade de personagens que provocassem algumas risadas. Não pretendemos ofender ninguém. Eu assumo toda a responsabilidade e peço desculpas a quem ofendemos.”

DOVE, mai.2011

Em 2011, a Dove foi criticada por outro anúncio: este mostrando três mulheres de pé lado a lado, cada uma com uma pele mais clara do que a mulher ao lado dela. Atrás delas aparecia escrito “antes” e “depois”; a indicação “antes”, posicionada atrás de uma mulher afro-americana, mostrava pele rachada, enquanto o sinal “após”, atrás de uma mulher branca, mostrava uma pele lisa.

“Pele visivelmente mais bonita”, dizia o anúncio.

A Edelman, empresa de relações públicas que representa a Dove, disse em uma declaração: “Todas as três mulheres pretendem demonstrar o benefício do produto ‘após’. Não toleramos nenhuma atividade ou imagem que insulte intencionalmente qualquer público.”

INTEL, jul.2007

Um anúncio de 2007 para o novo processador da Intel mostrou um homem branco cercado por seis velocistas negros. “Multiplique o desempenho do computador e maximize o poder de seus funcionários”, dizia o texto.

A Intel disse que sua intenção “era transmitir as capacidades de desempenho de nossos processadores através da metáfora visual de um velocista”, mas reconheceu: “Infelizmente, nossa execução não entregou nossa mensagem pretendida e na verdade provou ser insensível e insultante.”

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