Os dois textos que seguem são fortes, realíssimos em nossa sociedade. Revisitei-os hoje, depois de anos sem relê-los, porque, ao andar nas ruas do Leblon e da Tijuca, dois bairros que frequento bem no Rio de Janeiro, vi inúmeros pedintes, um número muito maior do que se teve nos últimos anos.
Infelizmente, como era de se esperar, a crise está atingindo os mais pobres. A corda sempre arrebenta do lado mais fraco. Tristeza profunda… Maior tristeza ainda é perceber que nada estamos fazendo enquanto povo, a não ser propagar indignação nas redes sociais.
Eu assumo minha total passividade e faço mea culpa sem sair do conforto do sofá de onde escrevo!
Deixo, ratificando o meu ato que bem representa a inércia do nosso povo hoje – antes dos textos de Heloísa Seixas e Manuel Bandeira –, um pensamento do escritor português Miguel Torga (pensamento este que tomei conhecimento ontem pelo Facebook). Nela, o escritor parecia prenunciar o que vivemos neste exato momento em nossa sociedade:
É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos, socialmente, uma coletividade pacífica de revoltados.
O querubim
Heloisa Seixas
Foi junto à parede dos fundos de um supermercado que eu o vi. Virei a esquina e lá estava ele.
Fazia sol naquela manhã, pois muitos têm sido os dias de sol. Mas, como era ainda bem cedo e a cidade mal despertava, o sol esbranquiçado e preguiçoso lançava sobre a calçada uma luz tímida, oblíqua. Seus raios, depois de esgueirar-se por entre os prédios ainda envoltos pelas últimas sombras, incidiam sobre o chão apenas num determinado ponto. E o facho de luz, reticulado pelos grãos de poeira em suspensão, derramava-se sobre as pedras portuguesas com um toque quase sobrenatural – como um raio de anunciação.
Pois era bem ali – no trecho da calçada banhado por aquele sol primeiro – que ele, o anjo, se encontrava.
Diante da visão, sustei o passo. Minhas mãos, até então frouxas ao longo do corpo, se entrelaçaram num gesto instintivo, como se postas para uma prece. E, imóvel, observei por um longo instante a cena que tinha diante dos olhos, de uma beleza renascentista.
Era um menino. Dormia. Descalço, vestia apenas um calção rasgado e sujo, tendo à mostra o torso magro, de costelas pronunciadas. Deitado de costas no chão, trazia os braços abertos, largados, e as pernas cruzadas uma sobre a outra, como um crucificado. Mas parecia feliz. Sorria no sono. Dormia profundamente, trazendo estampada no rosto aquela inocência que só as crianças adormecidas têm. Em seu sorriso e em sua postura havia um tal abandono, uma tamanha entrega, que era como se ele tivesse absoluta certeza de que nenhum mal podia atingi-lo.
Mas eu sabia bem que não era assim. Não conhecia sua história, mas imaginava que procurara o primeiro sol para se aquecer, talvez depois de uma noite insone e perigosa, percorrendo os caminhos traiçoeiros das ruas. Seu rosto, de traços perfeitos, estava imundo, assim como os cabelos, cujos anéis alourados mal se distinguiam em meio à poeira. Apesar do aspecto frágil, ele exibia, na pele morena e nos músculos justos, uma história de força, de luta e resistência. Uma história de dor.
Era com certeza um menino-homem, calejado já pela solidão e a violência. Apenas naquele instante – no abandono do sonho – voltara a ser criança. Apenas naquele instante se permitia o sorriso infantil, o gesto desarmado dos braços em cruz. Talvez, se o encontrasse desperto, eu tivesse uma sensação bem diferente, eu sentisse medo.
Pensando isso, retomei meu passo. Ao me afastar, ainda me virei para olhar, como a me certificar de que não fora uma visão sobrenatural. Mas ele continuava lá.
E eu fui embora, levando nas retinas a imagem do meu querubim abandonado.
CONTOS MÍNIMOS, JB – 15/04/01
O bicho
Manuel Bandeira
Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.